ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

CARLOS AUGUSTO LIMA


finge uma imagem e decifra
libras como
se dissesse aos cães
aquário entenderia azul e lírios 

alguma constelação marinha
ou astros
presságio nos grãos de areia
os olhos de Sofia ardem
e grita.
o seu sofrer
não dura mais que outro chamado
de afundar como caranguejos
puro engenho, solidão

lembro: alguém fizera lagostas
na água e sal
e amornam sobre a mesa.
meu sono preenche
os aromas salobros, vermelhos
pedregulhos e finíssimas agulhas
soma de morte e sabor  



* * *

 

pois a janela desfolha o bairro
um pedaço dele                          motocicletas
areia devora calçada, calçada e areia
homem humano disputa asfalto com bichos e pneus
a entrega é de bicicleta
água mineral na garupa
e gás
a louca que canta dez para meia-noite.
não há judeus nem árabes aqui
nem tailandeses ilegais num barco
de bandeira malaia
mulheres de camisola estendem cadeiras
vida alheia                 rosário de dor, fronte rústica
do time do coração
o pavilhão de três cores imita o
de um país estrangeiro
sol por sobre o horizonte do muro descamado:
consulado perdido
no bairro pobre e feliz  


* * *  

três inscrições em japonês moderno
ganji
qual parece ser o nome dela?
um pó na cerâmica branca que chamam
onde pisar  credencia
manual de instruções, pista
um pano úmido para sezões
nódoas, para encobrir uma
pegada multicor de
cola plástica.
silêncio.


* * *  

apavora
a possibilidade de faísca arder
a fileira de livros que se
joga contra bocal onde
três tomadas
disputam livros de bolso.


* * *  

a mulher ao que parece fala só
e os dois pequenos
no banco de trás dão conta
que o fícus cai
no meio da primeira avenida
do metro quadrado mais caro
um verme desfolha
o espaço contíguo
o metro mais caro.
não vêem o que vejo.
os passageiros que o
ônibus passa não têm
medida
como um ramo de coentro e
cheiro verde, folhas da castanholeira
no pátio ou abstração de
mensurar o universo.
a mulher ao que parece fala só
ninguém vê o que vejo.
o fícus cai                   dezembro
homem e sacola na frente do carro
engulo seco um palavrão
em fuga desse lugar.  
lugar  


* * *  

há uma rasteira meteorologia
por sobre imagem do móbile,
origami de garrafa pet imóvel.
tem gritos-silvos
o pega-pega violento das crianças
alguns tem parentesco com Cosme Chuvasco de Rondó  
tramam uma república arbórea.
o canto dos pentecostais ribomba
no quintal vizinho, glória e senhor
e salvação e louvor.
invento soletrar um hebraico impossível
invento um gargarejo deprecatório
cínico.
o alarido na área de serviço.
tem corpo de canção de amor, ondas médias
opereta barata de anjos demoníacos.
amor e assado de panela.
amor é gorduroso.
ecos magoados pela área de serviço,
as ofensas partilhadas. as ofensas.
todos dormem em paz.

* * *

se olhar bem, pode ver que
na base da grade vermelha
a base de ferro da grade vermelha
enferruja, carcome o mar    a idade
inversa das coisas
prevejo com requintes de crueldade
o grande acidente, a queda, o malefício.
alguém ginga, pulula aos arrojos
do café torrado
como uma lesma
ou molusco submarino
se movimenta em blindagem
corpo para dentro
corpo-rocha
o descompasso de telhados
a inscrição, caligrafia
outro lugar.
as pernas brincam       para fora
da grade vermelha
a mãe pede uma esmola
o vigia pede que saia.


*

 

Carlos Augusto Lima é poeta, autor de Objetos  (Alpharrábio Edições) e Eu Me Satisfaço Com a Minha Casa e o Deserto ( no prelo).

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