ZUNÁI - Revista de poesia & debates

[ retornar - outros textos - home ]

 

 

CARLOS BESEN

 

 

ÁGUA PRÓXIMA, TERRA CURTA

 

Os dias
mais curtos
que um braço:

ao fazer
as mãos,

deixo um dedo
para o rosto,

uma ilha
para a água.

 

CASCA DE PÁLPEBRA


Minha paciência estala,
voz de nó
no fogo dos dedos.

Ainda (a)guardo o gesto,
a bengala de pólvora
entre fósforos sadios.

* * *

 

Atraso
minha aspereza.

Sou desatento,
luz qualquer  

chamando de longe
a distância para perto.

 

* * *

 

O que oscila é dia.
O jazigo dos olhos:

ou árvore para sombra,
ou persiana de transparência.

 

* * *

 

A pálpebra,  

uma língua atrasada
para a água.

 

* * *

 

Compreendo o mundo,
piso como enxada.

Não tenho paciência
para durar.

O fogo me descasca.

 

 

DESARVORAR PELA ÁGUA

 

Os pés peneiram água
entre os dedos.
Carcaça sem afundar,
carrego-me ao fundo
sem pouso nem feudo.

Afogo sem raízes,
o mar me devolve
aborrecido.

 

* * *

 

A corrente marinha
não golpeia a ferro.

Perco o alfabeto
nos traços da alga.  

Anoto sem disciplina
o vôo da espuma.

 

* * *

 

Plana como agulha,
a linha do horizonte
produz lábia
com lábios de concha:

o mar desequilibra,
sol na visão da faca.

Os peixes pulam
como bolha devolvida,
como se desviassem
uma punhalada.

 

* * *

Abordado pelas garras
alcalinas da água,
os dedos me costuram
à pasta da areia.

Aluno oblíquo,
aprendo a ser árvore.
 

 

DEVOLUÇÃO DO ROSTO

 

Ao lavar a cara,
os dedos encolhem para a esmola
de escutar a água.

Abençôo o ouvido
incólume, bebo
os vagidos de ontem.

 

* * *

 

As mãos falando
travam a língua
e dispensam dentes.  

Ouço a mímica,
esgarço os improvisos
do anti-sólido.  

As mãos: cascos do rosto.

 

* * *

Tua boca esfarela em atos
de areia, o grão líquido
devolve a face à aspereza,  

tua cabeça deserta.
Tua boca espalmada como cárie:
punho de punhal.  


* * *

 
Um estampido,
alegria de aleluia,  

a água escuta o rosto.

 

 

ESTEIRA OBLÍQUA

Antepasto
de manhã,

teu coração
no meu ouvido,  

teu rosto
em minha boca,  

teu corpo caminha,
andarilho roto  

sobre minha língua,
linguagem de seiva,  

campo rubro
do teu rumor.

 

 

FOGE O FOGO DO GESTO

 

Há um incêndio
na matriz de cada apelo.

Há um fogo menor
na cicatriz de doar,
dizer o nome.

 

* * *

 

Tua voz se precipita por trás,
latido de punhal,
letra de punição:
chamar já é chama.

 

 

HÁLITO MARINHO

A água não
refuta um abraço.
O amor aquático
enlaça para dissolver.

Se afogo,
invento uma noite clara,
paixão escura,
afago de mármore.

 

* * *

 

Água:
não um abraço solto,
um soluço,
um vento jogando
folhas ao redor.

Água,
evito o desperdício
de esquecer.

 

* * *

 

O mar desaparece
o rumor.

A água,
véspera oblíqua,
não costura cicatrizes.

 

* * *

 

O líquido
se constela,  

uma pedra
esfarela fácil.

 

* * *

 

Água,
um grão de ar,  

uma carícia
sem piedade,  

um mundo
para o mundo.

 

UMA FRATURA

 

Tudo  res-
(&)     olvido,
estas frat-
ur(r)as, 

as águas
conti-
nuam
as cic-
atrizes
de árv-
ore.    

Tudo deci-
dido,  
dei-
cídio.

   

*

 

Carlos Besen nasceu em Porto Alegre (RS), em 1980. É bacharel em Filosofia pela UFRGS. Edita os blogues Na Selva e O Mel do Melhor e participa de  Algaravária e Miralume. Ganhou o prêmio literário Palco Habitasul - Revelação Literária na Feira do Livro em 2004 e 2005. Tem inéditos os livros de poesia Desarvorar e Uma Luz, Água Láctea.

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2006]