ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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CATARINA COSTA

 

 

 

 

Problemas de astronomia

 

Eu escrevia-te cartas e mais cartas tocadas por um fio de mútua incompreensibilidade que atravessava ao mesmo tempo a minha inépcia em entrar no teu sistema de deduções e a tua incapacidade para inferir o quanto de verdade tinham as minhas metáforas. Eu escrevia para esbarrar no modo que tinhas de não me leres, ou no modo organizado, de um maquinismo superior, que usavas para interpretar de raspão as minhas elucubrações. Escrevia-te cartas para colidir com o teu modo de sentires o meu discurso como palavras minhas em excesso, e nisto não deixavas de me dar uma certa objectividade. Recusavas pôr-te do lado das palavras que não serviam para resolver problemas referentes à vida no seu conjunto, ao espaço ou à astronomia. Eu descrevia-te as estrelas sob o ponto de vista das sensações mas tu precisavas das coordenadas com as quais pudesses medir a velocidade de um astro. Em criança já medias as órbitas dos satélites enquanto eu tirava fotografias amadoras à Lua e olhava as suas crateras como expressão de um vazio futuro. Escrevia-te cartas para materializar o vazio que nos ligava, o que era já anulá-lo pelo surgimento de matéria. Eu queria que me provasses algum tipo de existência, não necessariamente a tua perante a minha. Não precisarias de falar sobre o nebuloso mas somente do lugar preciso de um astro que colapsa, para que eu recolhesse o pó e reconfigurasse a poeira no infinito. Escrevia-te cartas e mais cartas e tu passavas por cima das afirmações que tão depressa se tornariam retractações e continuavas a visualizar o funcionamento de um qualquer engenho que nas minhas mãos não seria mais que uma geringonça avariada. Escrevia-te para que chegássemos a um acordo sobre o nada. E sem que me respondesses eu continuava a escrever-te cartas e mais cartas porque, tal como tu, também eu queria perceber o porquê de uma tão grande percentagem de matéria negra.

 

 

Fender Stratocaster

 

“Eu levo a minha fender stratocaster e toco para ti”. Se eu tivesse assentido, tê-la-ia levado e tocado uma música que talvez ainda hoje me soasse nos ouvidos. Mas nesse dia ele ainda não havia conquistado a minha confiança, era apenas uma criatura com laivos indefinidos de desespero que acreditava na urgência de ser gentil perante a minha aparente tristeza, sem perceber que a generosidade nascia do impulso de sarar a sua própria avidez de consolo. Essa música nunca tocada ainda me persegue, inaudível e sem melodia, um toque que, no limiar de se tornar silêncio, soa enquanto concepção de harmonia, a contrastar com as palavras de pronúncia rude e dissonante que designam esse instrumento que ele gostava de levar ao peito como uma arma, a sua fender stratocaster. Um nome de guitarra que parecia pertencer ao vocabulário militar e que, porém, me reservava uma música suspensa na sua ainda intocabilidade, cordas retesadas segurando uma agressão que se arranha e é apenas uma canção que não chegou a soar. E continua a perseguir-me, essa canção que ele me destinava na prodigalidade de quem ansiava por receber de volta aquilo que nem sequer tinha assente. “Eu toco para ti”, e quando mo disse eu ainda preferia a intermitência da sua fala à música que pudesse fazer sair dessa guitarra cujo nome era o sibilo de consoantes arrepanhadas em língua estrangeira, num acento electrizante que embalava o toque eléctrico que faria nascer. E hoje nos ouvidos tenho só o som desse nome ferino, fendido – fender stratocaster – que se esgadanha a sós, tenho nos ouvidos o toque que promete. E isso é a música possível.

 

 

 

A amputação

 

Se me faltasse aqui o lábio superior, além o pavilhão da orelha, acolá uma costela ou um dedo, se tivesse peladas na cabeça e a cara esburacada, isso não seria ainda contrapeso suficiente para a minha imperfeição interior. Franz Kafka, Diários


Nesse tempo o homem fantasiou pela primeira vez que amputava o antebraço e a mão esquerda. Era através de um assepticismo feroz, sem pontada de sangue, que essa imagem brotava dos recessos do desejo. Resistia duas fracções de segundo, um breve fotograma, pois no momento em que a mão direita, empunhando o machado, o descia sobre o braço contrário, cortando-o, cortava-se em simultâneo a cena, até só restar a consciência de que se removera algo essencial para lado nenhum. Fantasia de dor e prazer truncados à vez, e na qual o homem se via a abater-se sobre os seus próprios membros, em vingança face ao destino que o obrigava a ser inteiro por fora e desmoronado por dentro. Dois braços, duas pernas, uma cabeça, um coração a funcionarem terrificamente bem na sofreguidão para a velhice, enquanto nos pontos imateriais a individualidade se desagregava sem reconhecimento manifesto, e o corpo incorpóreo se escondia dos olhares, metido na sua crisálida de órgãos. Haveria que parar as pulsações, desenfreadas não por serem céleres, mas por serem imparáveis no seu tempo biológico. Fantasia que se truncava no acto do seu cerne, não era só o antebraço que era amputado, mas todo o corpo, toda a cena se decepava de alto a baixo, de modo a que a inteireza voltasse ou, afinal, se percebesse que nunca havia deixado de existir, e a imagem da amputação se entregasse apenas ao domínio da necessidade espiritual perante o que já está em pedaços. Uma operação que se fazia interna para contrabalançar toda a estrepitosa exterioridade que traria, fosse ela concretizada. Era um corte na intocabilidade das coisas, um corte que só a ele se fendia. Lá estava pois o antebraço intacto e o corpo inteiro, invadindo todo o campo visual, e o homem via-se a si mesmo na sua compactidade, um gigante robusto sustentado por um esqueleto quebradiço que crescera demasiado. Tinha um machado na mão direita e já não sabia onde desferir o golpe.

 

 

Monstros

 

Quantas vezes lhe vem a tristeza quando, reduzida à fêmea enrodilhada na sua própria cauda, se acaricia. Centra-se nos pontos nevrálgicos da fruição enquanto imagina os seus objectos de desejo a transmutarem-se: este aqui transforma-se naquele e vice-versa, corpos aos quais retira as emoções, cravando-lhes apenas nos membros uma ânsia igual à dela, mas é aí, nesse imaginar de corpos tão ferozes quanto volúveis, em que nenhum lhe mostra a sua substância independente, que ela se vai abaixo, sabe que os seus objectos de desejo são monstros que a assombram. E, quando em vez de um monstro, ela logra uma imagem mais substancial, mais aproximada de alguém que falta, então a dor vai-se mesclando com o prazer numa só sensação, atirando o prazer para o fundo da carne, em pontadas agudas que se vão afilando cada vez mais para dentro, bem recuadas da pele onde ressuma uma tristeza geral que inunda toda a superfície porosa. É aquilo que ela chama de nostalgia.

 

 

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Catarina Costa (1985) nasceu em Coimbra (Portugal). Tem um livro de poesia publicado, Marcas de Urze (2008), e textos editados em algumas revistas literárias, tais como Callema e Sibila. [catarinacosta3@gmail.com].

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