ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

CLAUDIO DANIEL




NO OLHO DA AGULHA

Tatuar silêncios como formigas.
Afogar os relógios
numa pálpebra.
Vestir o grito com a pele
do escaravelho.
Torcer os músculos da face
em perplexidade.
Cruzar a via absurda
das unhas, desorientado,
obscuro, recurvado
sobre as nádegas.
Saber que toda flor é ridícula,
e mesmo assim cultivar
o minério,
a dor,
a surda epilepsia.
Esquecer o próprio nome,
e sovar a terra
até a exaustão.
(Fosse apenas uma canção de colheita,
você diria amor e outras
palavras fáceis.)
Com o riso estúpido do camelo,
viajar ao olho
da agulha,
labiríntico, insano,
acreditando que toda história é um ácido.
Depois cauterizar a ferida,
aceitar o reflexo,
o simulacro,
lembrar-se
da semente antes do pão.
Tayata gate gate
paragate parasamgate
boddhi soha.

 

FILÓSOFOS, COGUMELOS

Rumor de verde-água esse bosque de caninos que desaparece.

Trevos
na boca

- odor
de cogumelos

e lua-de-
mosquitos -.

Estranha senhora fênix viaja em
caligrafia sua
tiara
azul.

Vagares da lua de outono biombo jasmim dragão
no teto
curvo
como atravessar
espelhos.

- Armas e cascos de cavalos
ao longe -.

Filósofos-de-laca conjeturam possíveis amanhãs

 

LEOA, CLAVÍCULA

Jovem negra pinta de azul-violeta as pontas dos mamilos.

Há jaguares
sob as unhas.

Mímica
de esfinge
nos pulsos.

Núbia voz animal raio-de-pedra golpeia nudez janaína
reflexo de híbrida
orquídea
ou seio-
noite-
flor-
que incandesce.

(Três colares
de relva;
riscos
gravados
na rocha,
sortilégio.)

(Pintura: mascar o carvão leonino da desértica
epiderme,
ruminando
arenoso
até cantar
a clavícula.)

 

PAVÃO, MARTELOS

Recomeçar a travessia do elefante, a via do esqueleto
e do coágulo.

Até queimar
o sol.

Mascando insanidade,
em ofício rouco
de martelos,

repetir o ato insone, raquítico, epilético.

Retribuir ao medo uma jóia
minúscula.

Fabricar, com as próprias mãos,
um pavão real
- e depois
cegá-lo.

Fornicar o amarelo - abstração
do violeta -

e desfazer
a palavra
estrela.

Até queimar
o sol.

Ser asqueroso, simples e tosco.

Desejar lutar
com Deus.

Por fim, recolher
as metades
do rosto,

e ver a luz refletida na mina
do mistério.

*


Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, nasceu em São Paulo (SP), em 1962. Publicou os livros de poesia Sutra (1992), Yumê (1999) e A Sombra do Leopardo (2001), entre outros títulos. Os poemas apresentados aqui fazem parte de Figuras Metálicas, a sair pela editora Perspectiva, na coleção Signos.

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2005 ]