ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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DANIEL FARIA

 

 

 

 

É um cristal ou melhor: cristalização. Quase. Uma estrela

            Do mar, na ponta de cada tentáculo

            Dentes, de lobo: animal faminto

            Devorando as bordas

            Do mundo.

 

            Oito-Olhos no centro: aranha cravada no eixo

            Do nada

            Patas caçando

            Um porto seguro

            No vazio, raízes em expansão:

 

            Pensar num besouro caído com o dorso

            No chão quente: movimentos descoordenados no ar:

            Membros de uma pessoa jogada do terraço de um arranha

            Céu.

 

            Tudo isso.

 

Um corpo que sente a vida ser criada

            Apaixonadamente, como dor, feridas

            Que se cristalizam, mineralizando-se:

           

            Assim o desejo se cristaliza em poema.

            Assim o lodo se cristaliza em história.

            Assim o caos se cristaliza em cosmo.

           

 

* * *

 

Toda manhã o sol emerge

            Vomitando sinais

            Cuspindo matilhas

            De rancor, tantas palavras

            Engrenagens

 

            Rodas dentadas

            Portando armas,

            Marcas. Multidões.

 

            Desenhar, com finos traços

            Como a safira sobre os sulcos

            De um disco

            O azul inútil de asas

            Transparentes, contra o céu.

 

            Elucidar, na mente de tudo

            O giroscópio (vazio) de anjos

Os abismos ínfimos

            Onde sobrenadamos:

 

            Que o ódio atravesse tua alma

            Como as partículas sem peso

            Que o universo vomita ao explodir

O sol.

                       

 

                       

 

POR DENTRO DO TEU ÓDIO

 

 

            O ódio da horda caçadora por dentro do teu ódio

                        dentro do teu ódio o ódio das ratazanas contra outras de outra ninhada por dentro do teu ódio ninharias milenares dentro do teu ódio o ódio de gerações por dentro do teu ódio as guerras que estão sendo planejadas dentro do teu ódio todo sentimento é lenha pra fogueira do teu ódio por dentro do teu ódio quanta alegria alheia como uma pedrada na boca do teu ódio por dentro do teu ódio a nostalgia dentro do teu ódio por dentro do teu ódio uma mistura de remorsos e respostas afiadas teu ódio por fora

 

floresta de dentes ou por fora teu ódio macio como caninos disfarçados de pétalas fora do teu ódio quantas palavras bonitas em teu ódio por fora ou severas: lágrimas, castiçal, fato, flora, metalinguagem por fora teu ódio também se arma de conceitos e as pétalas afiadas e brancas são viscosas de veneno gorduroso por fora do teu ódio o aroma de perfume

 

excessivo

 

dentro do teu ódio toda descoberta é tardia por dentro do teu ódio a soma alucinante de desistências e sacrifícios dentro do teu ódio algumas boas verdades dentro do teu ódio que cresce em você como um feto de dentes afiados que você acaricia com unhas de ferro por dentro do teu ódio a certeza do desejo da vitória e como é mesmo o nome daquele sábio chinês que mandou decapitar os covardes por dentro do teu ódio você pensa que seu dia vai chegar de dentro do seu ódio quem mandou você nascer por dentro do ódio neste maldito mundo de ódio por dentro de um elevador com serviçais carregando as malas do teu ódio por dentro do teu ódio nadando como um peixe num aquário de ódio e fora do ódio você sabe

 

 

                                   é o absurdo e nada

                        te deixa mais por dentro do teu ódio quanto

 

 

o absurdo.

 

 

 

 

O IPÊ AMARELO

 

O ipê amarelo dos meus sonhos teria flores sem elos com cores quaisquer a não ser

o amarelo em sua pureza de flores se abrindo

ao sol:

amarelo de face metálica, sem outro nome ou mistura

            (mesmo o avesso das pétalas ainda teria o mesmo

amarelo, onde eu poderia deitar minha sombra. Ele seria plantado no coração vertiginoso do continente, onde eu repousaria, longe do mar e seu rumor.

 

O ipê amarelo que tenho diante de mim, porém, é um tronco seco, fino,

 

                                                           um poste

                                                           um fio

                                                           um dedo

                                                           uma forca

 

Flores amarelas, sem alegria, sem esperança, desmemoriadas, absortas,

 

absurdas.

 

Sonhar é fogo. O amarelo mais puro é filho do instante. O ipê se acende e se consome na imaginação, como asas (de anjos): labaredas pétalas.

 

 

 

COMBUSTÃO HUMANA ESPONTÂNEA

 

            Mesmo que eu me cale, as palavras continuarão me invadindo. Palavras sopradas, inoculadas, jogadas de todos os lados prosseguirão seu trabalho persistente de inflar a alma. O mero silenciamento não é capaz de deter o processo, tão natural quanto qualquer outro, em que as palavras se misturam à vida dando origem a um sujeito inchado e combustível. Se eu fechar a boca, paralisar os dedos, conter-me, apenas adiarei a explosão inevitável. Sem contar que as palavras não decantam como matéria inerte num canto escuro de você. Brisa cheia de dentes remoendo as sensações, água-viva queimando a mente, matéria inflamável na alma –

                        deus azul inexistente, me ensine a arte sutil das metamorfoses.

 

 

 

 

 

DEPOIS DE LER A ARTE DA MEMÓRIA DE FRANCES YATES

                                  

            Você grava na mente o planeta que se expande como um vôo e

            De leite a branco, de branco a ar, de ar a outono. Declinar-se frio e úmido. Alma evapora do mel, alimento de deuses. Semear o girassol vermelho. Fazer amor com a puta de olhos furados e orelhas cortadas. O leão é manso aos pés do mago. Um carneiro, de chifres fortes, vem em sua direção no escuro: melancólicos têm memória de elefante.

            Você grava na mente a lua que se dissolve e cria musgo em seu sangue e

De lírio a azul, de azul a água, de água a inverno. Declinar-se frio e seco. Alma evapora do leite, alimento de deuses. Semear o trigo branco. Fazer amor com as chamas de um incêndio. O lobo é manso aos pés do mago. Um touro, de chifres fortes, vem em sua direção no escuro: melancólicos têm memória de leão.

            Você grava na mente o planeta que se enrola em suas veias como arame farpado e

            De sangue a ocre, de ocre a terra, de terra a primavera. Declinar-se quente e úmido. Alma evapora do trigo, alimento de deuses.  Semear o lírio verde.          Fazer amor com a princesa na cama de espinhos. O elefante é manso aos pés do mago. Um carneiro, de chifres fortes, vem em sua direção no escuro: melancólicos têm memória de lobo.

            Você grava na mente o sol até que ela cada vez mais quente brilha e 

            De trigo a amarelo, de amarelo a fogo, de fogo a verão. Declinar-se quente e seco. Alma evapora do lírio, alimento de deuses. Semear o mel azul. Fazer amor com a virgem de dentes pretos e língua de serpente. O leão é manso aos pés do carneiro. Um touro, de chifres fortes, vem em sua direção no escuro: melancólicos têm memória de mago.

 

            Tudo isso supondo que os caminhos são bifurcações em série de um mesmo centro brilhante esquecido mas real e que o mergulho ou o vôo levam à mesma divindade, que a sua matéria-prima mais íntima pode ser vista se você olha o alto e a dor ou a alegria na sua alma repercutem nos cristais celestes, quando por seu lado, melancólico leitor de livros de história, você olha pela janela e se depara com o nãocriado e persistente silêncio e o escuro, ou, mais que escuro, transparente silêncio que persistirá e não precisa de você e a memória é uma sangria desatada correndo para todos os lados enquanto se indaga sobre como harmonizar estilhaços do sol.         

 

 

 

 

SANGUE DE LOBISOMEM

 

 

De onde vem tanta revolta, um dia sempre me perguntaram. É assustador te ver grunhindo na mesa do bar, toda uma atmosfera de insultos. E logo você tão gentil, logo você tão pacato com aquele rosto cheio de sombras. O velho vizinho meio esquizo às vezes me trata como se eu fosse seu neto e por aí vai. Então de onde vem toda revolta.

            A verdade é que não sei e se soubesse talvez você não seria revoltado. Sou revoltado porque não sei o motivo da revolta ser minha. São figuras de admiração: Blake, Blanqui, a cadela Baleia, Ibn Arabi e algumas forças cósmicas profundamente dispersivas. A revolta tem a ver com furor analítico (um gosto pela anarquia): então quando digo figuras da minha admiração não é que sejam modelos existentes perante os quais se ajoelhar e sim que o milagre, o assombroso como força que te obriga a se maravilhar é um eco dessas figuras. Daria no mesmo dizer que ele é, portanto, uma admiração que se figura.

            E também eu preciso entender que a revolta é um afeto de amor e não de ódio. A certeza de que somos mais do que isso. De que não existe o tipo do revoltado como tipificação, sobre o qual se lance uma luz. Que a única coisa polêmica que existe foi a liberdade. Não o surto de palavras vazias. Derramar ódio sobre o mundo: não é nada além do que tem sido feito por Oito-Olhos nos séculos dos séculos, amém. O amor do revoltado não é, porém, algo que perfuma o cotidiano sórdido. É mais aquela conversa de Maquiavel no Jardim Oricellari, de pássaros bêbados adormecidos na página de um livro – e como são escuras as páginas de um livro fechado.

            Aliás, é a revolta que faz se ver o cotidiano como sórdido. O cotidiano não é sórdido em si mesmo. É sombrio aos olhos (de lince) do revoltado. E de onde vem o revoltado, perguntaríamos academicamente? Abandonemos as pseudo-explicações psicanalíticas, sem bem que a revolta pode mesmo ser uma doença. Uma doença que vem não se sabe de onde e emerge como desejo de ver toda a cidade sob uma nova luz, ainda não nascida, apenas vislumbrada no brilho súbito que brota e morre no coração obscuro dos revoltados – e todo coração é obscuro e a humanidade, sem cessar, repudia. 

 

 

 

* * *

 

 

São tantos os motivos pro amor não dar certo. A começar pela absoluta imprecisão sobre o que significa dar certo (a medida do sucesso é tão burocrática (e a burocracia interdita

 

            o amor)). Vejo as ruas desta cidade perigosa, a noite caindo como um estranho dourado sobre o céu azul, um pastor evangélico e uma ex-atriz vociferando contra

 

            o amor e como eles merecem o aplauso do cara solitário que leva sua caixa de cerveja pro apartamento onde vai passar o feriado de corpus christi tocando

 

            punheta sobre o amor, indefeso amor. O cheiro de tiner que sentimos ao ler o jornal e como se dizia antigamente os caras só querem meter

 

a faca e como o amor é celebrado, as frias flores tristes na vitrine e o que significa ser feliz, usar a buceta da mulher amada pra estourar

 

            pipocas enquanto a cerca elétrica mata pássaros e meninos e um anjo

 

            caído queima um bilhete premiado no canal de esportes. E nem tudo é questão do lado de fora, ainda trazemos o veneno, veja como quando você respira se engasga todo com os sapos que vomitam em sua garganta e mesmo que não queira ou acredite deve prestar contas porque se a felicidade é exigida junto com o amor a Alegria e o amor são interditos e não há nada de mais ridículo do que um professor apaixonado se perguntando onde ela está onde ela está com esse monte de citações encobrindo o seu corpo sagrado

 

            amor.

 

***

Dois olhos se mirando. Quem gravou essas finas pétalas negras, como um sol absorvendo a luz num suave céu de castanho noturno.

 

Dois olhos se mirando: entre eles não há espelho, o corpo é um anjo formado por anjos. A alma não é una coisa sólida, é miríade, íris, anjos migrando de um céu a outro e falando aos meus olhos em línguas outras, desconhecidas

 

minhas.

 

Quem gravou essas pétalas negras por dentro dos meus olhos. Minha memória, um momento de anjos falando em mim por línguas estranhas.

 

Corpo é anjo formado por anjos e cada anjo que perco e se encontra nestes outros olhos canta sua música silenciosa, abstrata e carnal. Os anjos cantam da vida, cantam de pétalas negras em céu noturno, silencioso e pulsante de quase palavras, miríades de nomes do amor. Íris:

 

amor, os seus nomes (de anjos) estão gravados em mim

 

à maneira negra.

 

Dois olhos se mirando, tateando-se. Táteis como o encontro de peles, suave calor que brota dos seus olhos, finas pétalas negras em céu castanho, anjos cantando sua língua de flores, impossíveis e reais, num céu noturno que desenha à maneira negra

 

meus signos. É estranha, convulsiva a língua dos anjos, gravada com finas pétalas à maneira negra nos seus olhos silenciosos cantando à maneira dos corpos que se encontram, não como espelhos, em impossível céu de anjos.

                       

                       

                       

NADA DEMAIS

(poema em 3 fases)

 

 

 

            Primeira fase

 

            As pessoas não

            Estão dormindo.

            A praça, simplesmente,

Está vazia.

 

O eco da música

Perdida

Não se esconde no inconsciente

Das pedras – o silêncio

É,

 

Só isso.

 

 

 

Segunda fase

 

É do espelho retrovisor

Que entrevejo a praça,

 

No vazio

 

Um girassol (anjo)

Perdido

No meio do concreto, ali

Não está, na superfície

Mineral do espelho, aqui

Onde espelho está –

 

Na alma da praça.

 

 

 

Terceira fase

 

Inverificável:

 

A matéria-prima do girassol

É o espelho, mas o girassol

Não está no espelho – o girassol

É,

 

No espelho.Só isso.

 

 

*

 

Daniel Faria é historiador e poeta. Autor do livro O Mito Modernista, publicado pela EdUFU em 2006. Publicou o livro de poemas Matéria-Prima, pelo projeto Dulcinéia Catadora em 2007. Acaba de ser incluído na Pequena Cartografia da Poesia Brasileira Contemporânea, organizada por Marcelo Ariel e editado pela Caiçaras. Outros textos de sua autoria podem ser encontrados no blog linguaepistolar.blogspot.com.

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