É um cristal ou melhor: cristalização. Quase. Uma estrela
Do mar, na ponta de cada tentáculo
Dentes, de lobo: animal faminto
Devorando as bordas
Do mundo.
Oito-Olhos no centro: aranha cravada no eixo
Do nada
Patas caçando
Um porto seguro
No vazio, raízes em expansão:
Pensar num besouro caído com o dorso
No chão quente: movimentos descoordenados no ar:
Membros de uma pessoa jogada do terraço de um arranha
Céu.
Tudo isso.
Um corpo que sente a vida ser criada
Apaixonadamente, como dor, feridas
Que se cristalizam, mineralizando-se:
Assim o desejo se cristaliza em poema.
Assim o lodo se cristaliza em história.
Assim o caos se cristaliza em cosmo.
* * *
Toda manhã o sol emerge
Vomitando sinais
Cuspindo matilhas
De rancor, tantas palavras
Engrenagens
Rodas dentadas
Portando armas,
Marcas. Multidões.
Desenhar, com finos traços
Como a safira sobre os sulcos
De um disco
O azul inútil de asas
Transparentes, contra o céu.
Elucidar, na mente de tudo
O giroscópio (vazio) de anjos
Os abismos ínfimos
Onde sobrenadamos:
Que o ódio atravesse tua alma
Como as partículas sem peso
Que o universo vomita ao explodir
O sol.
POR DENTRO DO TEU ÓDIO
O ódio da horda caçadora por dentro do teu ódio
dentro do teu ódio o ódio das ratazanas contra outras de outra ninhada por dentro do teu ódio ninharias milenares dentro do teu ódio o ódio de gerações por dentro do teu ódio as guerras que estão sendo planejadas dentro do teu ódio todo sentimento é lenha pra fogueira do teu ódio por dentro do teu ódio quanta alegria alheia como uma pedrada na boca do teu ódio por dentro do teu ódio a nostalgia dentro do teu ódio por dentro do teu ódio uma mistura de remorsos e respostas afiadas teu ódio por fora
floresta de dentes ou por fora teu ódio macio como caninos disfarçados de pétalas fora do teu ódio quantas palavras bonitas em teu ódio por fora ou severas: lágrimas, castiçal, fato, flora, metalinguagem por fora teu ódio também se arma de conceitos e as pétalas afiadas e brancas são viscosas de veneno gorduroso por fora do teu ódio o aroma de perfume
excessivo
dentro do teu ódio toda descoberta é tardia por dentro do teu ódio a soma alucinante de desistências e sacrifícios dentro do teu ódio algumas boas verdades dentro do teu ódio que cresce em você como um feto de dentes afiados que você acaricia com unhas de ferro por dentro do teu ódio a certeza do desejo da vitória e como é mesmo o nome daquele sábio chinês que mandou decapitar os covardes por dentro do teu ódio você pensa que seu dia vai chegar de dentro do seu ódio quem mandou você nascer por dentro do ódio neste maldito mundo de ódio por dentro de um elevador com serviçais carregando as malas do teu ódio por dentro do teu ódio nadando como um peixe num aquário de ódio e fora do ódio você sabe
é o absurdo e nada
te deixa mais por dentro do teu ódio quanto
o absurdo.
O IPÊ AMARELO
O ipê amarelo dos meus sonhos teria flores sem elos com cores quaisquer a não ser
o amarelo em sua pureza de flores se abrindo
ao sol:
amarelo de face metálica, sem outro nome ou mistura
(mesmo o avesso das pétalas ainda teria o mesmo
amarelo, onde eu poderia deitar minha sombra. Ele seria plantado no coração vertiginoso do continente, onde eu repousaria, longe do mar e seu rumor.
O ipê amarelo que tenho diante de mim, porém, é um tronco seco, fino,
um poste
um fio
um dedo
uma forca
Flores amarelas, sem alegria, sem esperança, desmemoriadas, absortas,
absurdas.
Sonhar é fogo. O amarelo mais puro é filho do instante. O ipê se acende e se consome na imaginação, como asas (de anjos): labaredas pétalas.
COMBUSTÃO HUMANA ESPONTÂNEA
Mesmo que eu me cale, as palavras continuarão me invadindo. Palavras sopradas, inoculadas, jogadas de todos os lados prosseguirão seu trabalho persistente de inflar a alma. O mero silenciamento não é capaz de deter o processo, tão natural quanto qualquer outro, em que as palavras se misturam à vida dando origem a um sujeito inchado e combustível. Se eu fechar a boca, paralisar os dedos, conter-me, apenas adiarei a explosão inevitável. Sem contar que as palavras não decantam como matéria inerte num canto escuro de você. Brisa cheia de dentes remoendo as sensações, água-viva queimando a mente, matéria inflamável na alma –
deus azul inexistente, me ensine a arte sutil das metamorfoses.
DEPOIS DE LER A ARTE DA MEMÓRIA DE FRANCES YATES
Você grava na mente o planeta que se expande como um vôo e
De leite a branco, de branco a ar, de ar a outono. Declinar-se frio e úmido. Alma evapora do mel, alimento de deuses. Semear o girassol vermelho. Fazer amor com a puta de olhos furados e orelhas cortadas. O leão é manso aos pés do mago. Um carneiro, de chifres fortes, vem em sua direção no escuro: melancólicos têm memória de elefante.
Você grava na mente a lua que se dissolve e cria musgo em seu sangue e
De lírio a azul, de azul a água, de água a inverno. Declinar-se frio e seco. Alma evapora do leite, alimento de deuses. Semear o trigo branco. Fazer amor com as chamas de um incêndio. O lobo é manso aos pés do mago. Um touro, de chifres fortes, vem em sua direção no escuro: melancólicos têm memória de leão.
Você grava na mente o planeta que se enrola em suas veias como arame farpado e
De sangue a ocre, de ocre a terra, de terra a primavera. Declinar-se quente e úmido. Alma evapora do trigo, alimento de deuses. Semear o lírio verde. Fazer amor com a princesa na cama de espinhos. O elefante é manso aos pés do mago. Um carneiro, de chifres fortes, vem em sua direção no escuro: melancólicos têm memória de lobo.
Você grava na mente o sol até que ela cada vez mais quente brilha e
De trigo a amarelo, de amarelo a fogo, de fogo a verão. Declinar-se quente e seco. Alma evapora do lírio, alimento de deuses. Semear o mel azul. Fazer amor com a virgem de dentes pretos e língua de serpente. O leão é manso aos pés do carneiro. Um touro, de chifres fortes, vem em sua direção no escuro: melancólicos têm memória de mago.
Tudo isso supondo que os caminhos são bifurcações em série de um mesmo centro brilhante esquecido mas real e que o mergulho ou o vôo levam à mesma divindade, que a sua matéria-prima mais íntima pode ser vista se você olha o alto e a dor ou a alegria na sua alma repercutem nos cristais celestes, quando por seu lado, melancólico leitor de livros de história, você olha pela janela e se depara com o nãocriado e persistente silêncio e o escuro, ou, mais que escuro, transparente silêncio que persistirá e não precisa de você e a memória é uma sangria desatada correndo para todos os lados enquanto se indaga sobre como harmonizar estilhaços do sol.
SANGUE DE LOBISOMEM
De onde vem tanta revolta, um dia sempre me perguntaram. É assustador te ver grunhindo na mesa do bar, toda uma atmosfera de insultos. E logo você tão gentil, logo você tão pacato com aquele rosto cheio de sombras. O velho vizinho meio esquizo às vezes me trata como se eu fosse seu neto e por aí vai. Então de onde vem toda revolta.
A verdade é que não sei e se soubesse talvez você não seria revoltado. Sou revoltado porque não sei o motivo da revolta ser minha. São figuras de admiração: Blake, Blanqui, a cadela Baleia, Ibn Arabi e algumas forças cósmicas profundamente dispersivas. A revolta tem a ver com furor analítico (um gosto pela anarquia): então quando digo figuras da minha admiração não é que sejam modelos existentes perante os quais se ajoelhar e sim que o milagre, o assombroso como força que te obriga a se maravilhar é um eco dessas figuras. Daria no mesmo dizer que ele é, portanto, uma admiração que se figura.
E também eu preciso entender que a revolta é um afeto de amor e não de ódio. A certeza de que somos mais do que isso. De que não existe o tipo do revoltado como tipificação, sobre o qual se lance uma luz. Que a única coisa polêmica que existe foi a liberdade. Não o surto de palavras vazias. Derramar ódio sobre o mundo: não é nada além do que tem sido feito por Oito-Olhos nos séculos dos séculos, amém. O amor do revoltado não é, porém, algo que perfuma o cotidiano sórdido. É mais aquela conversa de Maquiavel no Jardim Oricellari, de pássaros bêbados adormecidos na página de um livro – e como são escuras as páginas de um livro fechado.
Aliás, é a revolta que faz se ver o cotidiano como sórdido. O cotidiano não é sórdido em si mesmo. É sombrio aos olhos (de lince) do revoltado. E de onde vem o revoltado, perguntaríamos academicamente? Abandonemos as pseudo-explicações psicanalíticas, sem bem que a revolta pode mesmo ser uma doença. Uma doença que vem não se sabe de onde e emerge como desejo de ver toda a cidade sob uma nova luz, ainda não nascida, apenas vislumbrada no brilho súbito que brota e morre no coração obscuro dos revoltados – e todo coração é obscuro e a humanidade, sem cessar, repudia.
* * *
São tantos os motivos pro amor não dar certo. A começar pela absoluta imprecisão sobre o que significa dar certo (a medida do sucesso é tão burocrática (e a burocracia interdita
o amor)). Vejo as ruas desta cidade perigosa, a noite caindo como um estranho dourado sobre o céu azul, um pastor evangélico e uma ex-atriz vociferando contra
o amor e como eles merecem o aplauso do cara solitário que leva sua caixa de cerveja pro apartamento onde vai passar o feriado de corpus christi tocando
punheta sobre o amor, indefeso amor. O cheiro de tiner que sentimos ao ler o jornal e como se dizia antigamente os caras só querem meter
a faca e como o amor é celebrado, as frias flores tristes na vitrine e o que significa ser feliz, usar a buceta da mulher amada pra estourar
pipocas enquanto a cerca elétrica mata pássaros e meninos e um anjo
caído queima um bilhete premiado no canal de esportes. E nem tudo é questão do lado de fora, ainda trazemos o veneno, veja como quando você respira se engasga todo com os sapos que vomitam em sua garganta e mesmo que não queira ou acredite deve prestar contas porque se a felicidade é exigida junto com o amor a Alegria e o amor são interditos e não há nada de mais ridículo do que um professor apaixonado se perguntando onde ela está onde ela está com esse monte de citações encobrindo o seu corpo sagrado
amor.
***
Dois olhos se mirando. Quem gravou essas finas pétalas negras, como um sol absorvendo a luz num suave céu de castanho noturno.
Dois olhos se mirando: entre eles não há espelho, o corpo é um anjo formado por anjos. A alma não é una coisa sólida, é miríade, íris, anjos migrando de um céu a outro e falando aos meus olhos em línguas outras, desconhecidas
minhas.
Quem gravou essas pétalas negras por dentro dos meus olhos. Minha memória, um momento de anjos falando em mim por línguas estranhas.
Corpo é anjo formado por anjos e cada anjo que perco e se encontra nestes outros olhos canta sua música silenciosa, abstrata e carnal. Os anjos cantam da vida, cantam de pétalas negras em céu noturno, silencioso e pulsante de quase palavras, miríades de nomes do amor. Íris:
amor, os seus nomes (de anjos) estão gravados em mim
à maneira negra.
Dois olhos se mirando, tateando-se. Táteis como o encontro de peles, suave calor que brota dos seus olhos, finas pétalas negras em céu castanho, anjos cantando sua língua de flores, impossíveis e reais, num céu noturno que desenha à maneira negra
meus signos. É estranha, convulsiva a língua dos anjos, gravada com finas pétalas à maneira negra nos seus olhos silenciosos cantando à maneira dos corpos que se encontram, não como espelhos, em impossível céu de anjos.
NADA DEMAIS
(poema em 3 fases)
Primeira fase
As pessoas não
Estão dormindo.
A praça, simplesmente,
Está vazia.
O eco da música
Perdida
Não se esconde no inconsciente
Das pedras – o silêncio
É,
Só isso.
Segunda fase
É do espelho retrovisor
Que entrevejo a praça,
No vazio
Um girassol (anjo)
Perdido
No meio do concreto, ali
Não está, na superfície
Mineral do espelho, aqui
Onde espelho está –
Na alma da praça.
Terceira fase
Inverificável:
A matéria-prima do girassol
É o espelho, mas o girassol
Não está no espelho – o girassol
É,
No espelho.Só isso. |