ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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DIOGO CARDOSO

 

 

 

 

Sede

a dor pedia líquido à carne, mas seca, ela só pôde oferecer areia àquela que tinha sede.

 

Abandono

salas informes contra a cabeça.

paredes que não (se) trans-
passa.

a ferida cede à fenda que a convida escuro a dentro

: cabeça contra o infinito

 

 

Aqui

 

gotas de soro –

tempo fraturado à porta de vidro

                                                     : transparência

 

em meus olhos

(como se a qualquer momento alguém (me) tirasse o torpor do coma-ausente)

 

à cada

 

vento

sombra

sons o

 

não

 

deixa-me paralítico

 

ainda.

aqui.

 

 

Enigma

 

testemunhei teu nome no ocaso,

na certeza de mil sóis poentes.

no fogo dentro,

teu rosto era uma aparição infinita

 

– nascente de enigmas,

 

fagulhas escorrem de tua boca

o segredo de tua vinda

 

Aniquilação pelo rosto

olhar um rosto é lentamente – difícil terror na noite dentro.

: árvore abatida machucando
o coração da terra. lembrança da neblina deformada,
límpida fusão no quando


olho o. rosto de. vagar


olhar.

          lento.

                     g o z o s a m e n t e


(como quem morre nas mãos de um deus de éter)


olhar o rosto lentamente. uma única vez.
(sem voltar sequer a face para o poema que se esvai,
quando a segunda)

: olhar um rosto é dizer nunca mais

 

Evocação do rosto

deitar fora o nome,
desvestir-se de bio-
grafias.

: apenas o rosto

evoquemo-lo no ruído animal,
onde nos morre o desejo dessa
terra estanque.



Canto de Orfeu

 

sem saber se o que fazia era retorno ou partida

 

isso de te guardar em mim tem

nome impronunciável, inaudito

– iminência de nuncas.

 

não tem nome – retorno, partida

 

( É estancado no corpo, o que fica)

 

esse isso impregnado dentro,

essa outra carne,

esse viço

 

se crescendo ausente

 

: é nome que não se pronuncia

 

pernas bêbadas que te seguem

seu corpo longe par-

                                 tido na garganta

 

“Visione del silenzio
 Angolo vuoto”

 

desejo.

todos os rostos teus. e não: distante sê-lo

tua presença ausente


 

Cisão

o outono nasce uma rosa de fogo                                                                                   com rostos revirados em costas ancestrais

olho estrangeiro                                                                                                                  – morno – dentro                                                                                                               de umbigos inversos

danças guardadas

no segredo de a-                                                                                                         braços retorcidos                                                                                                              em distâncias petrificadas

olhar umedecido                                                                                                   procurando-me à nuca                                                                                               órfica

(eu, olhar estancado, colecionando nuncas)

 

 

Os fogos

 

minha voz grita

a distância que seus cabelos

cantam fogos ateados.

 

o grito bate nos cabelos,

voz de fogo ardendo púrpura em sua

boca que guarda esse meu grito oco.

 

longe.

 

o desespero queima as idades,

meu grito estancado no vento

onde seus cabelos deitam

carícias que minha voz guarda silêncios.

– seus cabelos de rosáceas mudas.

 

grito o desespero oblíquo de não tocar-me

 

os seus cabelos que não

me batem luzes líquidas

a sua boca que guarda

em mim o seu silêncio

 

– grito que seus cabelos em minha boca

sepulta

 

o que de ti me calo

 

 

Sete micro-cantos ou Bilhetes para auto-exílio

 

I

 

marechal – centro. vias de pelica

onde nossos pés acreditavam o poema.

nos mentia o lugar

que se falsava acontecimento

 

II

 

(era placenta seca o que pisávamos)

 

III

 

ruas fendidas, sondadas no enigma

que se nos desfaziam

– habitávamos em silêncio

no que hoje nos tecemos juntos

 

IV

 

renda expurgada de seu líquido,

sêmen oco que nos desalojava

gota-a-gota

 

 

V

 

(em você foi primeira a coragem de existir

para fora desse centro estéril, onde

– EM VERDADE –

o poema era acontecimento em nós)

 

VI

 

somos abortos, bia, desse ventre árido:

praças de areia, luzes diáfanas,

escombros de casa – que desabitamos. existimos

 

VII

 

num lugar espaço

aberto entre

o abraço e o infinito

 

 

 

*

 

Diogo Cardoso nasceu em São Bernardo do Campo [SP] e é estudante de Letras na Universidade de São Paulo. Foi um dos organizadores do "Sarau Faça pArte" (2004/2006) e um dos curadores do projeto "Clarice Lispector :" (2008), realizados em parceria com a prefeitura municipal de São Bernardo do Campo.

*

 

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