O GATO E O SOL NA JANELA
para Ferreira Gullar
Todo gato é esfinge
impossível desvelo na luz
Iluminada completa, inteira sem sonho
novelo puxado de um canto a outro, não é
enterrados, fundo nos olhos do gato
a nós cabe o segredo de rolar sem causa
Todo gato é esfinge
e eu sou o animal que não adianta
PRELIMINAR ERÓTICO
Penetra surdamente no reino das palavras
- Drummond
poeminha amor
um sobre o outro
foi de noitinha
você gosta sem ver
que sou tímido
vulgo texto-flor
DO POETA PERDIDO
Sou poeta do canto
do menino mal educado
sentimento da vergonha, do amor
Ontológico, sou o que estou
ensimesmado do ofício
preso da existência ao horror
Soldo amargo do engenho
do perfeito povo iletrado
morto da letras doutor
URBE ANIMALIA I
Urbana mosca amarela
açúcar em liga metálica
pobre pólen sacarídeo
tomado entre tapas, caídas
como lixo no chão
Ventre nos cantos da rua
couraça corpo cimento
nosso escuro silêncio
aumenta sua fome
(erário do sono, das sobras)
Morbo alado
grupos cinza sujo
arrulhos de gozo por pipoca
circulando arredores
uma questão sanitária
dos velhos na praça
OVORINHO
passa sobrevoando
o telhado de casa
um ovo
ovo de asa
dentro
de um ventre
não se vê bico
só palha e barro
não canta
no momento
convém aparecer
o ninho?
canta
passarinho
vizinho
POEMA TIRADO DE UM JORNAL LIBERTINO
Homem apaixonado morre no morro do capim-navalha
corpo perfumado caído por Carmem comprometida
- ainda desconhecido.
As jovens ouviram três gritos:
― Dois ais, um bramido!
é triste, mas foi bonito
singrou os pulsos profundamente
como se nunca tivesse amado
e tido os pulsos cortados
indício de prova do amor
fino bigode, bom trato
camisa aberta dois botões
cachos alinhados no pente
deitados no cardo crescido
mulheres condoíam, suspiravam
(sonhando seu corpo perfumado)
rogando a Carmem compaixão
atirado desse mundo
guardava chuva nos olhos
daquele favo coração
POETA SÓ
Voa baixo massa falida
peso sem amores e religião
atrai Sinão o quê?
Marcham tropas, átrios - atrito terrestre
açoites mundanos pelo céu da boca
canção dos homens e dos versos
Sobre nós a morte brilha, norteia
quintal dos uivos incompreendidos
homens despertam só para trabalhar
amantes dançam tomados no mesmo lugar
e mesmo o mar, desmedido
mantém os pés no chão |