XAMÃS
o poeta é sacerdote
da própria religião
xamãs inebriados
pensam enganar a realidade
na tentativa de ludibriar a morte
clérigo imoral
sua ética
incorpora as realidades de todos os mundos
e outros ainda
como Hermes ou Exu
pendente entre as cosmogonias
carrega mensagens dos deuses
(para cima e para baixo)
um bom poeta só o será
ao encarar a sua extinção pessoal
Rimbaud foi
bruxo a seu tempo
usou a extinção de sua quintessência
e fez poesia além da palavra
INDISCUTÍVEL
há um desenho
perfeito em teus olhos
de acumular pedras da estrada
e icebergs a deriva
água pura
a salvo
para que se tome
um chá de gosto indiscutível
antes de se morrer
FOLHAS DE VENTO
a lua se quebra
em penhascos de faca e gelo vivo
escamas de turquesa fina aguda
plumário de serpente
folhas de vento
suçuarana de sopro
suave fumaça leve
que dá vida ao barro
irmão coiote
caminha sobre as línguas da pradaria
sobre as pegadas dos que já são extintos
dos que sempre estarão
onde o velho jaguar pisa
nasce o caminho
que se revela
a bíblia do homem não é mais a do animal
desfez-se a harmonia
as manchas das costas de felino
escrito está o nome da criança deus
porção branda da brisa
serve de alimento
às dores da rocha mãe
o parto do tempo
areia esculpindo o mundo
a cria dos peixes à superfície da água
respirados pelo grande espírito
que é pai e mãe ao mesmo tempo
inflamam os pulmões da terra
cultivam vida até onde se pode levar
tornar a lembrar o que vai acontecer
que a chuva já caiu aqui ontem
e cairá lavando as dores e o medo
por pior frio
há primavera
alento e cores
soa o tambor dos olhos
soa o coração nos dedos
soa o trovão
chuva que chega
volta sempre a carne para meus ossos
PEDRAS NUAS
corpo de tesoura
(de metal animal)
de corte regular
de linhas femininas girando ao eixo central
destas de coser carnes
sangue em pequenas pedras
a língua mergulhada em aço reluzente
doando ao ar todo o espelho
espectro de dias e horas
o livro que contém todos os nomes
que nas bordas trazem profecias
de vates infantis e incompletos
de bandeiras em frangalhos
as fotografias espalhadas no lençol
tudo em desalinho o quarto
a janela de vento e cortinas vivas
o recorte da vida
em meio a uma descoberta tétrica
a tentativa de racionalizar o medo
enquanto o vento dobrava as bananeiras
e o quintal se transferia ao poucos para o futuro
e depois o esquecimento
em uma máquina de devorar a si mesma
nunca mais houve um dia como aquele
e o gosto de menta doce e pedras nuas
calor morno subindo a espinha
fôlego parado em afogo
quase um útero por um segundo
lua de água azul
e sempre a mesma memória
(quando nasci não chorei
arrancaram-me da morte sem meu consentimento)
TODAS AS COISAS
I
qual a distância
do latido de um cão?
II
esta lua trouxe para minha casa
uns panos muito brancos
que alvejados de anil
doem os olhos do menino
(mais tarde se descobrirá poeta)
III
incomoda-me a lua cheia
e sua menina andando
de braços apertados
em uma braça de flores
que não estão ali
ou de braços abertos
tentando enlaçar o vento
com seus dengos
com olhos de regato seco
e sardas na cara
que pisa insolente
nas águas do rio em que me banho
(ou não serão mais
as mesmas águas?)
IV
pois que todas as coisas
tem um nome
e este nome as pariu
PLANO
um peixe
com um dado
desenhado no dorso
qual tatuagem
de um azul elétrico
de facas de aço novo
que corre o corte
e soa em harmonia perfeita
de pássaros pendentes
em fios que seguram o horizonte
entre postes
cinco linhas matemáticas
pauta natural
em geometria própria
a música do universo
que emenda vidro e cristal
(como grito)
e tudo são olhos
de ver verticalidades das montanhas
que ocupam silenciosamente
o fundo do plano
EFÍGIE
o olho de uma mulher
é uma efígie
e todo aquele
que se aventurar
além do limite do horizonte conhecido
mergulhará em um vazio escuro
onde em frio espaço
em silêncio de pedras
de queda interminável
estarão todas as respostas
e nenhuma será reconhecida
NOVAS PALAVRAS
não inventario novas palavras
estas me inventam
com boca de sede insaciável
e primaveras com dentes
as letras são códigos completos
cada uma
carrega um poema vítreo
olhos de peixes fossilizados
em complexidade
toda a palavra é criação
desde o princípio de tudo
até o último suspiro da matéria escura
desde a água vermelha
que me completa
até as pedras calcárias
produzidas em meus rins
placenta
vento
desenha seu movimento na grama
uma mão invisível
acaricia os pelos de um gato imaginário
que se eriçam
a terra aparenta
ser um animal dócil
mas carrega as entranhas de felino e fera
a placenta da destruição espera
nos talos e espigas
se equilibram bicos de lacre
(aves clandestinas neste solo)
o macho e a fêmea
a ensinar a colheita a seus filhotes
juntos fazem a refeição
em espreita
batendo em revoada
até ao movimento do vento
2
neste canto do mundo
os pássaros vivem suas vidas
não são parte
das tragédias que os emolduram
este sinistro conjunto de prédios de calcário queimado
e esqueletos de ferro e aço
é uma casa da dor
onde se mordem as palavras
antes de alcançarem as línguas
todas as pústulas e dores
as partes finas do corpo
delicadamente cortadas
e extraídas
3
bebo o tropeço
dos insetos ao rés do chão
em sua marcha perene
que pode abolir o tempo
onde tudo é uma máquina de devoração
4
ai de nós que sabemos
de nossas dores
e dos dias de morrer
após os dias de viver
escritos no livro dos testemunhos
e do quanto nos recusamos a esta justa medida
5
agora é hora
de só observar
e aceitar a aragem
acariciar com suavidade
a grama |