Quantas vezes vi a loucura me percorrer cegamente as entranhas?
Lavrando do fundo de um corpo sua flor brutal
Libertando
A dança desregrada que atravessa a voz
Recompondo
Na noite o ouro intenso onde a Lua faz ressaca.
Estou completo em minhas paisagens.
De uma vida inteira absorvo a marcha
Canto as estações abertamente
Tocando com o esquecimento as margens
Que se distanciam
E evocam
Toda pureza de uma arte.
Quantas vezes essa loucura corrompeu o último enlace
Do medo que se abre ao fim de cada feixe de encanto
No alimento obscuro
Colhido do apuro
Das visões imensas?
Toda obra é terrível e sangra
Na memória a sua imagem.
No auge insondável desse estrondo
Canto
Em volta de uma dor
O dorso se contorce
No centro
Multiplicando o gesto
Um eco indefinido devora em travessia
Centenas de mundos construídos
E sonhados.
Pois a música se apossa da ébria lentidão do meu engano.
De uma imprecisão sonora
o arco de um pássaro
baila no ar da tarde.
Dos degraus de uma estética vasta
a dança primordial de um poema
na leveza que antecede a arte.
O
poema emerge dessa amplidão migrante,
de um transbordar que navega
e busca em si mesmo o seu mar.
Trai o reino em silêncio
e reverbera em liberdade
o acaso do seu gesto.
INTROSPECTO
Se
eu colocasse o olhar,
pura ave de esquecimento,
percorrendo o exílio
como um grande talento.
O vício embebesse o mistério
no vão desta noite
(pelas trevas ferozes,
nos gestos sonoros do corpo).
Com um lirismo carnalmente alquebrado,
incestuoso,
avançaria devorado
contra a muralha do meu assombro.
Com inóspito horror brilharia dentro do ventre.
Invadiria meu próprio abismo exaltado
e em mim mesmo ficaria acordado,
profundamente.
Neste acorde me consumiria
até o último poema.
AS FACES DO MUNDO
Com
uma mão, severo, ele julga,
Com outra ele abençoa,
A quem lhe consagra o canto, ressoa,
Revela-se o poder da cura.
Um ou outro será julgado,
Tocar-lhe a face turva de serpente,
Ou a gloria do outro lado,
Da mão eterna, semovente.
Um é pastor, outro é arado,
Para sermos semeados em seu tempo,
No dia intemporal, na luz infinda,
Que desce de seu manto e ilumina,
A metade de sombra, a inimiga,
Treva que se prende a seus passos.