ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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FELIPE STEFANI

 

 

Quantas vezes vi a loucura me percorrer cegamente as entranhas?
Lavrando do fundo de um corpo sua flor brutal
Libertando
A dança desregrada que atravessa a voz
Recompondo
Na noite o ouro intenso onde a Lua faz ressaca.

Estou completo em minhas paisagens.
De uma vida inteira absorvo a marcha
Canto as estações abertamente
Tocando com o esquecimento as margens
Que se distanciam
E evocam
Toda pureza de uma arte. 
Quantas vezes essa loucura corrompeu o último enlace
Do medo que se abre ao fim de cada feixe de encanto
No alimento obscuro
Colhido do apuro
Das visões imensas?
Toda obra é terrível e sangra
Na memória a sua imagem.
No auge insondável desse estrondo
Canto
Em volta de uma dor
O dorso se contorce
No centro
Multiplicando o gesto
Um eco indefinido devora em travessia
Centenas de mundos construídos
E sonhados.
Pois a música se apossa da ébria lentidão do meu engano.

 

A CATEDRAL SUBMERSA

De uma imprecisão sonora
o arco de um pássaro
baila no ar da tarde.
Dos degraus de uma estética vasta
a dança primordial de um poema
na leveza que antecede a arte. 
O poema emerge dessa amplidão migrante,
de um transbordar que navega
e busca em si mesmo o seu mar.
Trai o reino em silêncio
e reverbera em liberdade
o acaso do seu gesto.



INTROSPECTO

Se eu colocasse o olhar,
pura ave de esquecimento,
percorrendo o exílio
como um grande talento.
O vício embebesse o mistério
no vão desta noite
(pelas trevas ferozes,
nos gestos sonoros do corpo).
Com um lirismo carnalmente alquebrado,
incestuoso,
avançaria devorado
contra a muralha do meu assombro.
Com inóspito horror brilharia dentro do ventre.

Invadiria meu próprio abismo exaltado
e em mim mesmo ficaria acordado,
profundamente.
Neste acorde me consumiria
até o último poema.

 


AS FACES DO MUNDO

Com uma mão, severo, ele julga,
Com outra ele abençoa,
A quem lhe consagra o canto, ressoa,
Revela-se o poder da cura.

Um ou outro será julgado,
Tocar-lhe a face turva de serpente,
Ou a gloria do outro lado,
Da mão eterna, semovente.
Um é pastor, outro é arado,
Para sermos semeados em seu tempo,
No dia intemporal, na luz infinda,

Que desce de seu manto e ilumina,
A metade de sombra, a inimiga,
Treva que se prende a seus passos.

 

 *

 

Felipe Stefani é poeta, artista plástico e fotógrafo. Nasceu em São Paulo em 1975. Já fez de tudo, até biologia, porém foi na arte que encontrou meios de se relacionar com o mundo. Faz parte do grupo Só Desenho, que tem os desenhos publicados no site www.pbase.com/sodesenho. Ilustrou o livro Teatro das horas do poeta André Setti, editado pela Edições K. Tem poemas e desenhos publicados no sites www.meiotom.art.br e www.cronopios.com.br .  Prefere que sua arte fale por si mesma. E-mail:  felipe.stefani@uol.com.br.

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