FERNANDA DIAS
POSTAIS DO SUL DA CHINA
Aqui a poesia me exaspera
linha que não entra na agulha
palavra escusa debaixo da língua
pluma azul de pega rara e esquiva
indizível maravilha nunca vista
assim como estas ruas e praças
da cidade tristíssima e soberba
prenhe de memórias esquecidas
cabaia de renda do primeiro baile
a rebentar pelas costuras delidas
em corpo de matrona nova-rica
* * *
Já néons insanos trepidantes
lhes carimbam a alma entorpecida
já a turba em frenesi os leva
entre lojas berrantes e comidas
turbulentos embustes, chamarizes
caminham mas não vão a lado algum
traçando na calçada portuguesa
os trilhos dos folhetos que não lêem
passam não deixam nome nem sorriso
ninguém tem face nesta multidão
* * * *
lindas manhãs na rua de Nanquim
risco de avião no céu azul-cetim
sussurro de vagens, bagas caindo
calor húmido, agonia plácida
flora acesa, rubro furor de acácia
bendito viço verde da vida
Arranha-céus espelhados no asfalto
algo no tempo tenso como um arco
visa outras eras na escrita dos letreiros
* * * *
Ali é o delta inchado e lamacento
cordas de águas celestiais vibrando
ali é o mar do Sul da China
suas sereias de barcos bramindo
seus mistérios seus tesouros submersos
suas dez mil ilhas, sua música eterna
zunir do vento, bendito som fecundo
* * * *
ágil inocência gato que desliza
nas derradeiras ruínas
ao luar a erva reverdece
bebendo orvalho
num beiral cinzento
não te chamei e não vieste
o chá que não bebeste arrefeceu
na porcelana fina do meu bule.
* * * *
sobe estrídula a voz da cigarra
é a hora em que recendem as folhas
semicerrando os olhos ao sol
vejo o rosto do menino que foste
o som estival leva-me aos anos
dos pomares, irmãos e primos
cestos, mãos perfumadas de sucos
vem vindo a noite equívoca
prepara-te para a escura memória
o segredo da cigarra fecha o dia.
* * * *
Neste jardim orquídeas e rouxinóis
não são rimas para poema exótico
aqui o pássaro rouxinol em canto e penas
está ali nos ramos da champaca
uma árvore a cada primavera mutilada
pelo fatal perfume dos botões
e as orquídeas aos cachos são banais
carne vegetal suspensa feita cor
ensaiando funesta sedução
da mariposa macho que por ela
ignora a fêmea. Aqui, perfume, cor
tudo concorre simultâneo e certeiro
para o êxtase perdulário deste Maio
* * * *
Pisando panfletosespalhados
De flores mercenárias do casino
O homem de lucidez acometido
Esmurra de súbito a própria cara
Soltando urros como um bicho
Ali onde dantes acenavam
As verdes palmas das arequeiras
Agora mil olhos multiplicam
Em estilhaços de espelho acrílico
O sarcasmo de um sorriso plástico
Em cada ponto de luz soturna
Corpos vagos, esgares descosidos
Ufanos dos signosfalsos nas camisas
Os rostos vão pastando simulacros
O louco berra sozinho no semáforo.
* * * *
Mais cinzentas que o fumo as vestes de calico
Mais rugosas as mãos que o lenho na lareira
Vê os dias da luz passar por dentro da retina
A labuta nos campos os vestidos de menina
O indigo fresco ainda azul e os olhos vivos
Verdes ainda as traves da choupana
Verdes pássaros os cantos os arrozais
Verde o ardente fôlego do amor.
Agora os olhos brancos vêem mais
*
Fernanda Dias nasceu em Moura, Portugal, e é residente permanente de Macau desde 1986, onde lecionou no Liceu e, de 1999 a 2005, na Escola Portuguesa. Durante uma década esteve ligada à Oficina de Gravura da Academia de Artes Visuais de Macau e participou de numerosas exposições internacionais, de gravura e pintura. Livros Publicados: Gao Ge — Poemas (tradução) coleção Escritas de Macau, edição Instituto Português do Oriente, 2007. Poemas de Uma Monografia de Macau, coleção Pavilhão do Insólito, edição COD, Macau, 2004. Chá Verde, poesia, edição Círculo dos Amigos da Cultura de Macau, 2002. Rio de Erhu, poesia, edição Fábrica de Livros, Macau, 1999. Dias da Prosperidade, contos, edição Instituto Cultural de Macau / Instituto Português de Oriente, 1998. Horas de Papel, poesia, edição Livros do Oriente, Macau Poesia, 1992. |