ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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FERNANDA DIAS

 

 

 

 

POSTAIS DO SUL DA CHINA


Aqui a poesia me exaspera

linha que não entra na agulha

palavra escusa debaixo da língua

pluma azul de pega rara e esquiva

indizível maravilha nunca vista


assim como estas ruas e praças

da cidade tristíssima e soberba

prenhe de memórias esquecidas


cabaia de renda do primeiro baile

a rebentar pelas costuras delidas

em corpo de matrona nova-rica



néons insanos trepidantes

lhes carimbam a alma entorpecida

já a turba em frenesi os leva

entre lojas berrantes e comidas

turbulentos embustes, chamarizes


caminham mas não vão a lado algum

traçando na calçada portuguesa

os trilhos dos folhetos que não lêem


passam não deixam nome nem sorriso

ninguém tem face nesta multidão



lindas manhãs na rua de Nanquim

risco de avião no céu azul-cetim

sussurro de vagens, bagas caindo

calor húmido, agonia plácida

flora acesa, rubro furor de acácia

bendito viço verde da vida



Arranha-céus espelhados no asfalto

algo no tempo tenso como um arco

visa outras eras na escrita dos letreiros



Ali é o delta inchado e lamacento

cordas de águas celestiais vibrando

ali é o mar do Sul da China

suas sereias de barcos bramindo

seus mistérios seus tesouros submersos

suas dez mil ilhas, sua música eterna

zunir do vento, bendito som fecundo



ágil inocência gato que desliza

nas derradeiras ruínas


ao luar a erva reverdece

bebendo orvalho

num beiral cinzento


não te chamei e não vieste

o chá que não bebeste arrefeceu

na porcelana fina do meu bule.


sobe estrídula a voz da cigarra

é a hora em que recendem as folhas

semicerrando os olhos ao sol

vejo o rosto do menino que foste

o som estival leva-me aos anos

dos pomares, irmãos e primos

cestos, mãos perfumadas de sucos

vem vindo a noite equívoca

prepara-te para a escura memória

o segredo da cigarra fecha o dia.



Neste jardim orquídeas e rouxinóis

não são rimas para poema exótico

aqui o pássaro rouxinol em canto e penas

está ali nos ramos da champaca

uma árvore a cada primavera mutilada

pelo fatal perfume dos botões

e as orquídeas aos cachos são banais

carne vegetal suspensa feita cor

ensaiando funesta sedução

da mariposa macho que por ela

ignora a fêmea. Aqui, perfume, cor

tudo concorre simultâneo e certeiro

para o êxtase perdulário deste Maio



Pisando panfletos espalhados

De flores mercenárias do casino

O homem de lucidez acometido

Esmurra de súbito a própria cara

Soltando urros como um bicho


Ali onde dantes acenavam

As verdes palmas das arequeiras

Agora mil olhos multiplicam

Em estilhaços de espelho acrílico

O sarcasmo de um sorriso plástico


Em cada ponto de luz soturna

Corpos vagos, esgares descosidos

Ufanos dos signos falsos nas camisas

Os rostos vão pastando simulacros

O louco berra sozinho no semáforo.



Mais cinzentas que o fumo as vestes de calico

Mais rugosas as mãos que o lenho na lareira

Vê os dias da luz passar por dentro da retina

A labuta nos campos os vestidos de menina

O indigo fresco ainda azul e os olhos vivos


Verdes ainda as traves da choupana

Verdes pássaros os cantos os arrozais

Verde o ardente fôlego do amor.


Agora os olhos brancos vêem mais

 

 

*

 

Fernanda Dias nasceu em Portugal, Baixo Alentejo, e é residente permanente de Macau desde 1986, onde leccionou no Liceu e, de 1999 a 2005, na Escola Portuguesa. Em Macau estudou gravura sobre cobre com o Professor Bartolomeu dos Santos e durante uma década esteve ligada à Oficina de Gravura da Academia de Artes Visuais. Participou em numerosas exposições colectivas internacionais, nomeadamente enquanto membro do Círculo do Amigos da Cultura de Macau.

 

Livros Publicados:

2007 – “Gao Ge”, Poemas, (tradução) colecção Escritas de Macau, edição Instituto Português do Oriente.

2004 - “Poemas de Uma Monografia de Macau”, colecção Pavilhão do Insólito, edição COD, Macau.

2002 - “Chá Verde”, poesia, edição Círculo dos Amigos da Cultura de Macau.

1999 - “Rio de Erhu”, poesia, edição Fábrica de Livros, Macau.

1998 - “Dias da Prosperidade”, contos, edição Instituto Cultural de Macau / Instituto Português de Oriente.

1992 - “Horas de Papel”, poesia, edição Livros do Oriente, Macau Poesia.

 

No Prelo:

“O Sol, a Lua e a Via do Fio de Seda”, poemas

“Contos da Água e do Vento”, contos

“Shu Wang” poemas, tradução

 

Leiam outros poemas da autora.

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