SOLITUDE
Sonhar paraíso que enxágua retinas
em moinhos-de-vento.
No paraíso, esquecidos de tudo,
jogamos
búzios, modelamos o barro,
dormindo em
camas de ilusão,
acordados pelo assovio de um círculo branco.
No paraíso, um dia, palavras de Shiva
Nataraj,
outro subimos a encosta pedrenta, saltamos
da beira do abismo à solitude do jarro.
Ontem somos mulheres, fritamos peixe,
ou amanhã, homens, varremos a casa.
Sábado, porque só há sábado no paraíso,
crianças sopram o sol e o perfume do sol
nos impregna de duas eternidades.
Quando morremos, sim, porque há morte no
paraíso,
em cemitérios não nos acostumamos,
fugimos pelas crinas de garças,
escutando na barca Nautikon
a respiração de Buddah,
a çankha de Buddah.
AS MUITO RICAS HORAS DE BUDDAH
Ânfora faz sombra em Buddah
que
saboreia
figo
no
umbigo
de um de seus 1001 mantras
No jarro a luz:
jarro fica santo
luz
não
cabe
em nada
nem sabe palavras
A METAMORFOSE DO CONDUTOR
DA BARCA NAUTIKON
Certa manhã Buddah acorda para o assombro
de se parecer com certo animal
da classe dos peixes,
coanictes
Crossopterígios,
da ordem Coelacanthini,
A cabeça com muitas cartilagens,
dentes apenas na extremidade do pré-maxilar,
E cauda com três ramos.
- Que me aconteceu? - pergunta Buddah.
GUARDA-SÓIS EM FÚRIA
"Não procures nem creias".
(Fernando Pessoa)
Antes o carvão te quis, Buddah.
Nunca perdeste o regato na língua,
nem sua alma foi um guarda-sol
carregado em fúria pelo vento.
Nautikon: barca de água viva.
Nautikon te quis antes do sol, antes do antes.
Buddah recita o mantra:
"Antes que a primeira vela acendesse,
a vela já estava acesa".
No recinto isolado vemos Buddah
circundado por árvores perfumadas.
Os olhos de Buddah iluminam o sol.
Tu e a barca Nautikon lançam ao céu
um longo desgoverno.
Ele escuta o tímpano do jarro ao vento
e medita o reflexo do silêncio.
O SONO DE BUDDAH
"Como dizem os persas:
o sono é uma rosa".
(Anônimo)
No sonho,
Buddah respira, acordado,
lágrima de gazela no parque de Sarnath.
Respira o abandono daquela árvore:
metade imersa na imagem,
metade imersa nele.
MOSTEIRO
Meus medos
tinham árvores e corredores de mosteiro.
Dava o sopro uma aragem às árvores
que imitavam freiras cochichando
nos longos corredores do mosteiro.
Duas figueiras-bravas as árvores - duas
freiras.
NOA
Eu rezarei a noa de um colar sem sombras,
que te guardará da ilusão enorme.
As relíquias de um domingo de ramos
esquecerei no copo d'água
e nunca mais te verei embaixo da figueira.
A sombra adriática do desejo eu busco
e o vento que ergueu tua saia,
a saia com que baixaste ao túmulo.
BETELGEUSE
Betelgeuse no langor da névoa.
Névoa há séculos
quer adorar esquife.
Se o sonho secasse a névoa,
Betelgeuse teria sete mares molhados com a voz:
pedra de orvalho.
A DISSOLUÇÃO DA PONTA DE AÇO
Uma palavra que iluminasse
o fundo poço,
que transmutasse osso
em musgo.
O fundo poço clareasse retinas
com água que
escorresse de bicas.
E, para acordar da longa noite de pedra,
só temos,
talvez, as palavras.