ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

FERNANDO JOSÉ KARL

 

 

SOLITUDE

 

Sonhar paraíso que enxágua retinas
            em moinhos-de-vento.
            No paraíso, esquecidos de tudo,
            jogamos búzios, modelamos o barro,
            dormindo em camas de ilusão,
            acordados pelo assovio de um círculo branco.
            No paraíso, um dia, palavras de Shiva Nataraj,
            outro subimos a encosta pedrenta, saltamos
            da beira do abismo à solitude do jarro.
            Ontem somos mulheres, fritamos peixe,
            ou amanhã, homens, varremos a casa.
            Sábado, porque só há sábado no paraíso,
            crianças sopram o sol e o perfume do sol
            nos impregna de duas eternidades.
            Quando morremos, sim, porque há morte no paraíso,
            em cemitérios não nos acostumamos,
            fugimos pelas crinas de garças,
            escutando na barca Nautikon
            a respiração de Buddah,
            a çankha de Buddah.

 

AS MUITO RICAS HORAS DE BUDDAH 

Ânfora faz sombra em Buddah
que
saboreia
figo
no
umbigo
de um de seus 1001 mantras 

No jarro a luz:
jarro fica santo
luz
não
cabe
em nada
nem sabe palavras
 

A METAMORFOSE DO CONDUTOR
DA BARCA NAUTIKON
 

Certa manhã Buddah acorda para o assombro
de se parecer com certo animal
da classe dos peixes,
coanictes
Crossopterígios,
da ordem Coelacanthini,
A cabeça com muitas cartilagens,
dentes apenas na extremidade do pré-maxilar,
E cauda com três ramos.
- Que me aconteceu? - pergunta Buddah.
 

GUARDA-SÓIS EM FÚRIA

"Não procures nem creias".
(Fernando Pessoa)
 

Antes o carvão te quis, Buddah.
Nunca perdeste o regato na língua,
nem sua alma foi um guarda-sol
carregado em fúria pelo vento.
Nautikon: barca de água viva.
Nautikon te quis antes do sol, antes do antes.
Buddah recita o mantra:
"Antes que a primeira vela acendesse,
a vela já estava acesa".
No recinto isolado vemos Buddah
circundado por árvores perfumadas.
Os olhos de Buddah iluminam o sol.
Tu e a barca Nautikon lançam ao céu
um longo desgoverno. 

Ele escuta o tímpano do jarro ao vento
e medita o reflexo do silêncio.
 

O SONO DE BUDDAH

"Como dizem os persas:
o sono é uma rosa".
(Anônimo)
 

No sonho,
Buddah respira, acordado,
lágrima de gazela no parque de Sarnath. 

Respira o abandono daquela árvore:
metade imersa na imagem,
metade imersa nele.
 

MOSTEIRO

Meus medos
tinham árvores e corredores de mosteiro. 

Dava o sopro uma aragem às árvores
que imitavam freiras cochichando
nos longos corredores do mosteiro. 

Duas figueiras-bravas as árvores - duas freiras.
 

NOA

Eu rezarei a noa de um colar sem sombras,

que te guardará da ilusão enorme.
As relíquias de um domingo de ramos
esquecerei no copo d'água
e nunca mais te verei embaixo da figueira.
A sombra adriática do desejo eu busco
e o vento que ergueu tua saia, 

a saia com que baixaste ao túmulo.
 

BETELGEUSE 

Betelgeuse no langor da névoa.
Névoa há séculos
quer adorar esquife. 

Se o sonho secasse  a névoa,
Betelgeuse teria sete mares molhados com a voz:
pedra de orvalho.
 

A DISSOLUÇÃO DA PONTA DE AÇO 

Uma palavra que iluminasse
            o fundo poço, que transmutasse osso
            em musgo.

O fundo poço clareasse retinas
            com água que escorresse de bicas.

E, para acordar da longa noite de pedra,
            só temos, talvez, as palavras.

 

*

 

Fernando José Karl nasceu em Joinville (SC), em 1961. Poeta e jornalista, publicou os livros Desenhos mínimos (prêmio Helena Kolody, 1996), Diário estrangeiro (prêmio Cruz e Sousa, 1996), Travesseiro de pedra (prêmio Cruz e Sousa, 1998) e Brisa em Bizâncio (2002).

*

 

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[REVISTA ZUNÁI- ANO III - Edição XII - MAIO 2007 ]