FERNANDO JOSÉ KARL
1.SE EU MESMO FOSSE O INVERNO SOMBRIO
(A cisterna --- Opus 1)
Eu ouço a fonte dos tontos.
Quem ouve a fonte dos tontos não cabe mais dentro dele.
Manoel de Barros
Caí na cisterna abobadada de Bahr El Khabeer
para escutar mel nas ostras,
para escutar a fonte dos tontos,
para escutar o sumo solar.
Aqui na cisterna tenho orgias de latim
e sou virgem de mulheres.
Meus olhos cobertos por vidros fumados,
de aros muito grossos e talvez prateados.
A cisterna mormacenta sufoca,
enquanto rememoro as cavilações
daquela noite de runas que vaticinou:
eu só poderia clarear o inverno sombrio
se eu mesmo fosse o inverno sombrio
2.LUCTANTES VENTOS TEMPESTATES
QUE SONORAS
No mais mineral das profundas prosas altas,
onde a viola de chuva se esconde,
lá onde as piscinas ondulam tempestuosas,
quando o escarcéu das águas se avulta,
lá a voz selvagem e as iguanas sedentas,
lá, na voz, se aclara a palavra nunca vista
e a obsedante garoa rega a pedra da elegia.
No alto-mar de transparente massa cristalina,
quanto mais ao alto-mar de silêncio perto,
mais a voz vai aclarando,
se antiga é a alma que se vislumbra,
assim das profundas mostra claro e radiante
o mineral das prosas altas
que serena o que, nas sedentas, há de árido.
3.MAS O POETA MORA A SÓS NUMA CASA DE ÁGUA
(De um poema de Hilda Hilst)
Um sol de gelo paira a Casa de água:
o que eu adoro é ninfa imaterial,
agreste brancura da flor de mandacaru,
dançar na Casa de água de Georgia O’Keeffe
ou sonhar o pescoço de Vishnu,
depois rabiscar águas com barcas brancas.
O sonho humano se abrupta nos escolhos.
Georgia O’Keeffe lambe, com língua de vaca,
o sal do gramofone.
No seu túmulo, grafado em pedra, inscreve-se:
eu fui uma Casa de água.
4.CRÓTALO
Ouro nos cactos que circundam a Casa de Água:
crótalo, crótalo, crótalo.
Folha de hortelã imersa no chá frio.
Georgia O’Keeffe morde conchas finas.
No domingo recalcitrante o fresco de águas
indo entre galhadas e pedras.
Folha de hortelã, oásis, xícara de chá.
Georgia O’Keeffe sorve,
para assombrar o assombro:
ouro-crótalo, fina água de goivo,
um risco de lágrima na concha.
Escolhe a carnação do cristal,
adoça a espinha do peixe
na música que se derrama nos ouvidos.
5.LEVO CAPINZAIS D’UMA ÍNTIMA SOLEDADE
Chovam capinzais e a Cassiopéia na tua frase!
Chovam antiqüíssimas estrelas no teu gelo!
Esguichos de unicórnio e quintal de cinamomos,
meu amor, minha concha, meu osso de Trakl.
Coroada de branca espuma a brisa, barcas o mar,
caixa-de-música o ar e água pura a fonte,
enquanto zaranza o vendaval e o quarto se acalma,
o crisantempo de Georgia O’Keeffe se alucina.
E que te orvalhem no jardim dos camaleões.
Durma até, durma, que eu te ressuscito.
E ao adormeceres comigo, sem que me toques,
possa a minha árvore branca
oxigenar a pura fonte no pedrento,
meu amor, meu labirinto incrustado de cornucópias.
*
Fernando José Karl nasceu em Joinville (SC), em 1961. É poeta e jornalista. Tem vários livros de poemas publicados e premiados, entre eles Desenhos mínimos de rios (Prêmio Helena Kolody/1996), Diário estrangeiro (Prêmio Cruz e Souza/1996) e Travesseiro de pedra (Prêmio Cruz e Souza/1998). Durante seis anos foi redator e editor-assistente do tablóide cultural paranaense Nicolau. Também trabalhou como editor-assistente no suplemento cultural Anexo, do jornal catarinense A Notícia. Vive em São Bento do Sul e acaba receber, pela terceira vez, o Prêmio Cruz e Souza, agora na categoria romance. |