FLÁVIA ROCHA
TANKA
Dez mil folhas
I.
Nas noites quentes
adulterar as formas
e as texturas,
esquecer atrás de si
as reminiscências.
II.
Ir para longe
dos quartos sob a lua,
e se extraviar
entre as coisas leves
e sem indiferença.
III.
As dez mil folhas
espalhadas pelo chão,
nunca escondem
passos que se afastam
da estrada possível.
GHAZAL
Expressão impassível no rosto sem nome:
a memória, sem itinerário, falseia um nome.
Pretensão é querer descobrir o homem
obscuro e sincero por trás do seu nome.
Ele se concilia com tudo que consome,
e descortina a primeira camada do nome.
As marcas agora visíveis comovem:
não basta quebrar mitos em Seu nome.
O divino devora a matéria da fome
e não fixa a vibração sutil do nome.
A fome persiste sobre as camadas e move
no rosto um sinal de luta por um nome.
Mais fundo, pouco resta que console:
a entrega é falha sem a alquimia do nome.
O tempo passa sem deixar que se molde
na memória uma imagem perfeita do nome.
Faço minha a procura convicta do homem
por um rosto seu – empresto-lhe meu nome.
ATEMPORAL
No espaço das formas inconstantes,
o vazio preenche eternidades distintas –
um morrer de uma coisa que já não existe
para que outra tome o seu lugar
fora do tempo – explosão da célula sutil
que nos difere de todas as coisas.
DEIXANDO PARA TRÁS
o vaso polido sobre a mesa
(há uma passagem debaixo do viaduto) –
na grama rente do parque submerso,
nós nos perderemos.
APOSTA
A vista para o mar
no andar mais alto do edifício abandonado.
Aposta nas ondas, nos pedregulhos
como quem está pronto para o salto –
moldura para gaivota.
NOSSA CASA NO ALTO
O verão seco queima chumaços
de erva-doce no mato ao lado de casa.
A árvore com nove araras vermelhas
injeta gritos na vista recortada de torres.
HIPÉRBOLE
Desta cadeira (o forro manchado de sol),
diante ondulações de morros chamuscados,
avista-se o jardim lá em baixo:
um galho quebrado é a devastação.
И МРАЧНО ХОР ЦИКАД ВДРУГ ЗАЗВЕНЕЛ ИЗ САДА*
ANNA AKHMATOVA
No jardim, som de cigarras:
esta é sua última existência:
como água corrente, ou erva daninha,
sem a memória dos sonhos dos outros –
vozes cruzam o ar sem o dom
de serem ouvidas.
SCHÄRFER ALS JE DIE VERBLIEBENE LUFT: DU SOLLST ATMEN*
PAUL CELAN
O ar cortante: é preciso respirar.
Moldes de plantas por toda parte:
quase plantas, mudas, frescas,
infiltradas lá – quase uma casa.
O pó remexido,
e ninguém para nos encontrar.
O QUE É PRECISO ESQUECER É O DIA CARREGADO DE ATOS
CECÍLIA MEIRELES
Uma flor amarela voa –
parece impossível.
Na noite ex-humana
também sonhei com uma ponte colorida
que vinha pelos ares.
Espuma breve do seu retorno.
*
Flávia Rocha nasceu em São Paulo em 1974. Jornalista, formada pela Fundação Cásper Líbero, trabalhou nas redações das revistas Bravo!, República e Carta Capital, e atualmente colabora com diversas publicações. É autora do livro de poemas bilíngue "A Casa Azul ao Meio-dia/ The Blue House Around Noon" (Travessa dos Editores, 2005). Tem mestrado (M.F.A.) em Criação Literária/Poesia pela Columbia University e é uma das editoras da revista literária americana Rattapallax. Editou antologias de poesia brasileira para as revistas Rattapallax (EUA), Poetry Wales (País de Gales) e Papertiger (Austrália), entre outras. Fundou, com seu marido, Steven Richter, a Academia Internacional de Cinema (www.aicinema.com.br), onde desenvolveu e coordena um curso de Criação Literária. |