ASSIS DE MELLO
TEMPO FUGIT
( Aos poetas Márcia Maia & D’Angelo )
1
Um grande úbere
na abóbada do céu
e eu
a ordenhar as horas
eu e minhas moscas
a ordenhar as horas
enquanto a noite muge
Cada minuto
é um filamento
a jorrar
das glândulas da grande-mãe Perenidade
Melhor nutrir-se
assim
quando os cometas passam
pela via branca da continuação
como lascas de carvão
na água rasa
2
O gato
o sono das crianças
o sestro canto da coruja
são distintivos da noite
assim como o doido
o bêbado, os depravados
e seus tenesmos
e todos os joões e miguéis insones
&
as mulheres com botas
com estampa de onça
[ No micélio dos fungos
um tic-tac de relógio ]
3
Foge o tempo
Voa Cronos
- aquele que engoliu seus filhos
e apartou o céu da terra
Voe também
a loucura de cada ser
e cada criatura
pois é melhor nutrir-se
assim
é melhor nutrir-se
assim
de alumbramentos superiores
e haurir a vasta brisa
do sem-fim
quando os olhos se arregalam
nos intervalos
de Hölderlin
A CASTA JUDITH
( Ao poeta Antonio Cisneros )
A casta Judith
beata de óbito e nascença
não foi de se cheirar
Há boatos de que sobre nada meditou na vida
e a todos execrava
prescrita por antigos sacerdotes
Bebês lhe eram gosmentos
a juventude transversa
homens ficassem longe
mulheres: vacas
Deambulou por cerca de 700 anos
Trancafiada num quintal
estercava canteiros de flores
e solfejava, pra si mesma, hinos celestiais
Pobre alma
resumida em revirar estrume
e a espiar o mundo em malogro
Como a tia-avó do poeta Cisneros
preocupou-se mesmo
em manter a boca e as pernas bem fechadas
Nunca estimou bichos de pêlo
e botava veneno pros gatos
Tão rude foi - e tão mesquinha -
que ao arrumarem seu corpo para o esquife
não careceu de algodão nas ventas
Mulher azeda que amava flores aquela Judith
Amava-as sem desconfiar da orgia
que as plantas faziam em seu quintal
e jamais cismou que semente e fruto
são denúncias de um conluio genital
Passava manhãs e tardes a glorificar abelhas
que lambiam as pequenas anteras dos falos vegetais
cobertas de pólen
e sorviam o doce dos gineceus
- aveludadas vulvas
A morte libertou-a pouco
de seu diário louco:
inumada num cascalho
onde mal cresce o mastruço
um cãozinho chamado Torresmo
irriga sua lápide
ANTES QUE A NOITE MORDA
( Para Ana Lúcia Paterniani )
Cá estamos
com essa exclusiva insanidade
cotidiana
roendo unhas
entre caixas de aprazolan
e n cápsulas de sertralina,
cloridrato
A prescrição funciona
O pânico foi emoldurado
entre duas lâminas de vidro
e sustenta-se num parafuso
enfiado na parede
de um quarto
que evitamos
Bem-vinda é a chuva
nessas noites de alforria
conquistada
a faca e foice:
parte da água
percola nos jardins
e na terra dos vasos
e, como um homem comum
dará boa cama e boa seiva
a que despeja no telhado
- ó triste fado -
percorre rotas contorcidas
no interior de ductos
que quebram-se em ângulos
nos túneis de metal galvanizado
antes de lavar o chão do pátio
e a chuva do pátio
terá destino mais prosaico
num metrô de PVC
que desemboca na sarjeta
A estória dessas águas
sumaria a história de uma vida
e nesta noite de ação de graça
e bioquímica domada
pegamos uma tela em branco
pigmentos, pincéis
e criamos cenas de uma infância surreal
- P.S.:
As águas das pias, dos chuveiros
dos vasos sanitários
sentenciadas e servis
terão destino asqueroso
Antes que a noite morda
bendita é a chuva na loucura nossa
*
Francisco de Assis Ganeo de Mello é natural de Piracicaba, São Paulo. Biólogo com mestrado em Zoologia e doutorado em Biologia/Genética, é docente na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”- Campus de Botucatu, onde também se dedica ao estudo de insetos.
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