ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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GABRIEL DOS SANTOS

 

 

 

 

a flora de andy warhol

 

estou encolhendo

recolhendo cacos de pétala

 

flor que se estremece toda para dentro

flor-mão

flor-vergonha

flor-flor

flor-sem-flor sem flor que se dá o prazer de fingir flor

fingir dor

falsidade da falsidade

atuação: brincadeira da brincadeira

 

estou encolhendo

os recolhidos

 

amar

dar-lhe uma flor VERDE

abraçar-lhe

dar-lhe um lhe VERDE

abra-lhe dá-lhe lhano lhe VERDE

 

estou colhendo

a flor lixo da madrugada

 

flores mendigos flores putas flores ladrões

flores coroas flores comunistas flores capitalistas

flores farristas flores bêbados flores classe média

flores drogados flores vagabundos flores novos gênios

flores doentes flores perdidos flores maníacos

isto tudo já é de conhecimento geral

então não sei porque vira verso (se fosse o inverso

quem sabe com flores virgens flores padres flores bunnies

flores fiéis flores cavalheiros flores mocinhas flores executivos

flores moderninhos flores asseados flores crianças

flores bailarinos flores formiguinhas flores floridas)

só algumas coisas são verdadeiras

e as verdades são imutavelmente versos

tudo que eu disse é verdade? não sei

e nem sei se uma pergunta, que não é nem mentira nem verdade,

pode virar verso - por isso o não sei logo depois

que é verdade

 

o que fazer?

sentar e gritar-colher um fazer.

 

 

 

canção popular

 

 

 música

                        de rocha contra rocha

                        acorde monolítico

 

      o vento sibila

                  cobras mutiladas

                  canção sem letra

                  melodia pétrea

 

       haveria

                      ética

                      ótica do cético

                      quando sequer há carne

                   sussurrando

                                                      movimento?

 

 

 

língua do lince

 

o exército chinês desce dos céus montados

em ideogramas-dragões

 

desculpas de samurai enigmático

 

espírito da cobra-lagarto

dançando a cada hôi e

                          hái e

                          kun e

                          kan e

                          san

 

a saliva mais precisa que a espada

                       sun cortando o vento os cabelos

as gengivas

 

cada ímpeto de coragem

                  acima da própria altura

 

nas cortinas

partidas:

lembranças pós-batalha

da última

 

fumaça

de chá fresco.

 

 

 

o tecido do céu rasgado

pelos dentes de tubarão

cáries roubadas da empresária camelô

patroa me gritando alguma inverdade nublada

nos dias de carnaval banzeiros

se alguém tivesse coragem de transliterar o deserto

a chuva desistiria de nossa cidade

do descalabro dos solos

discos de areias como canais lacrimais

chupando e empurrando gases mortais

para exércitos nazistas de lepidópteros

inadestráveis novas eras sem chão

pisando novamente o carpete das nuvens

meus amigos robôs me transfundindo sangue

enquanto eu penso no neón de las vegas

nos pôsteres da grace kelly de meu bisavô

na diretora luciferina mastigando juventudes

nos cabeludos e fedorentos de sempre

nas pueris menininhas chafurdadas por paus por paus

nas lambisgoias genocidas cometendo crimes capitais

nos pixels furtando idealizações masturbatórias de virgens

no terrível cheiro podre que foge dos peixes pelintras nas vielas

nos dias em que fui metralhado por ressonâncias magnéticas

na pobre coleção de camisinhas que só aumentava a cada dia

nos infelizes pais que apostaram no espermatozoide errado

nos disfarces afrodisíacos das namoradas dos amigos (ou amigas)

nas leituras públicas de poemas gagos

no óleo que derramaram sobre os fetiches sexuais e também carbonizados

no sono tranquilo dos cães que em nada pensam além dos lagos repletos de patos

nos projéteis arrebentando portas até atingir sonâmbulos indefesos

na água de repente verde de repente negra de repente vermelha de repente vinho

nas flores que entram pelas janelas disfarçadas de percevejo

nos pêlos miseráveis pedindo moradia abrigo copo de água

nas sucessivas derrotas de um país da segunda divisão

no alienígena vestido de cozinheiro italiano

na sombra sobre o chão sobre os olhos dentro do copo de música

nos sonos vadios de capas de chuva órfãs

nos panfletos sobreviventes da terceira guerra

nas rachaduras vermelhas do subsolo enfermo

nos meteoritos carnavalescos explodindo fogo e purpurina

no suicídio-assassinato de um irmão xifópago

na cena do crime repleta de digitais e perfume francês

no vidro esmeralda observado por curiosos viageiros

no jogo de loteria vencido por quem apostou 12345

nas diástoles em câmera lenta dos filmes de horror naturalistas

no impulso do atleta sexagenário na janela do décimo quarto andar

na fúria com gosto de pimenta engolida pelos funcionários públicos

nos lixões movediços que engolem quinquilharias ex-tecnológicas e sonhos

nas sessões de psicanálise onde mentiras explicavam mentiras

na mesa velha que resguarda mãos vivas e mortas

na mosca que aprendeu breakdance e morreu tragicamente na escola de dança

nas tintas púrpuras que se misturam com as secreções purulentas

no inferno de java corrompendo os downloads que a solidão fazia

no suco de saliva que os bons homens aprenderam a suportar

na bochecha rubra do garoto que prescindiu da escola por causas nobres

nos yarbles de billy boy sendo despedaçados pelos droogs rivais

nos estupros imaginários que os homens faziam ao ver sugar kane cantando

na estrela decadente cuja luz passou a servir de mata-mosquito

no dicionário de termos inexistentes no qual a palavra eskysytysyun acaba de ser excluída

nas orelhas quasimodescas dos lutadores de vale-tudo

nos carrões luxuosos dos comerciais luxuosos na tevêzinha de oito polegadas

na mordida sem saliva que o administrador-cafetão pediu de sua secretária-prostituta

nos gritos de guerra do revolucionário macintosh contra a novidade

no som incivilizado que ecoa das metrópoles megalópoles hiperlópoles

na reencarnação zarathustriana da formiga assassinada em alguma chuva de verão

no resto de pano que o tato jurou esquecer entre suas memórias

no fôlego enfim cedendo para o ponto final

no transitório pedindo ajuda do infinito

na palavra encontrando o momento em que o pensar dorme.

 

***

 

solstício

 

 

segunda-feira

 

 

a luz desmaiou

sobre

os vivos

 

banhou

os feridos

 

atiçou

a inveja

dos mortos

 

 

terça-feira

 

 

ouviu-se o grito da areia:

 

"Apolo,

 

tua bravura

são meus olhos cortados"

 

 

quarta-feira

 

 

piscinas de óleo

 

corredores cheirando

a inseticida

 

varizes de cimento

espirrando cal escura

 

sentado sobre os telhados

o filho morto brilhando

com seus irmãos

cacos de vidro

 

 

quinta-feira

 

espera

 

espera

 

a recompensa

sempre

vem

como

milagre &

praga

egípcia

 

 

sexta-feira

 

 

esconderijos:

vamos procurar

os esconderijos

 

viagens viagens viagens

 

a gente pode ir ao outro lado

(do mundo da galáxia da vida)

ou ficar aqui

 

só fingindo

 

o fingimento sempre é a viagem mais comprida

 

 

sábado

 

 

hoje não tem sol

 

mas ainda há

movimento:

 

o calor

adora

humor negro

 

 

domingo

 

 

adeus bom dia

adeus boa tarde

adeus boa noite

 

com toda essa luz

reluzindo nas pelagens escuras

e queimando as retinas dos dormidos

é um dia perfeito

para brincar com a neve

de uma nova

eternidade.

 

***

 

fatal

 

 

o sapo

salta

no fato

 

o fato

falta

no retrato

 

o mato

corta

o salto

 

o salto

mata

o sapo

 

corta

o mato

da xota

 

enxota

o fato

do retrato

 

enforca

a língua

da morta

 

sufoca

o teu

peito fraco

 

eu

mato

o teu(

 

 

salta

o salto)

 

a tua

falta

ao meu

 



 

 

*

 

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