GABRIEL TUPINAMBÁ
DÍSTICOS DIALÉTICOS
(OU SONETO ESPELHADO )
A poesia não precisa do homem:
As rimas, como carvão, se consomem
E o que sobra desta metamorfose
De homem em verso, e então, celulose
É só um espirro num dia chuvoso,
Que se confunde no esdrúxulo gozo
De ser também como a chuva lá fora.
Nariz de “poeta” é dáctilo: ora
Escorre - espirra, ora se cala.
A poesia não pertence a esta mala
Sem alça que é o homem, que é a caneta.
Não. A poesia não é maçaneta
De porta ou de parte alguma, de todo:
É o homem que é na água esse lodo.
Todo mundo sabe que é o eletrodo,
E não o coração, a pulsar. De modo
Contundente - sonoro, ele bate.
E só se confundem por que há quem ate
Em uma só coisa: janela e sala.
Não.Nada no mundo ao olhar se iguala.
Não existe “cheiro” sem antes faro
(Nem fogo sem antes fumaça, é claro...)
Por isso é sempre tão embaraçoso
Lançar-se em busca do “misterioso”:
Não há nada além de um vazio ileso.
Pois é...O mundo permanece preso
A nós, como epiderme no abdômen.
Da poesia? Não... não precisa o homem.
ONÇA PINTADA (PAISAGEM À NOITE)
Que numa pintura tua esteja você
toda - esse é o mistério. Feita de matéria
alguma, você flutua com todo o resto,
perfeitamente em casa com todas as coisas.
De longe é uma estrutura apoiada em três
pontos, com frutas e vestidos pendurados
pelos galhos - e curvas de lua na água,
distorcendo a tinta escura em formas cheias
de nada: nuvens vagando no céu à noite.
Mas de perto não há a tinta, nem a tela:
só o teu corpo e as marcas que fiz com as mãos.
Do vermelho ao roxo - o espectro de cores
do desejo. Eu pintei de volta em você
as noites que antes eu havia tirado -
o teu corpo, marcado na carne com vários
eu te amo eu te amo eu te amo eu te amo
agora descansa emoldurado na cama.
Ainda assim, o mistério maior continua,
pois és minha como um quadro é de um artista:
mesmo o mais fiel auto retrato carrega
a mais selvagem alteridade da tinta.
DE QUE AS CHUVAS DE VERÃO SÃO A MAIOR PROVA DA EXISTÊNCIA DIVINA
Que meu ódio fique impresso em pegadas na praia do Leblon,
Enquanto passeio com os cachorros depois da chuva –
Quero poder olhar para trás e me ver marcado na areia
Úmida e marrom: ver como arrasto os pés, derrotado
Por ainda estar vivo e querer estar vivo, envergonhado
De me contentar com uma trepada por semana e um cd
Do caetano no repeat do meu som, colocando em palavras
Uma dor que nem é minha. Enfim - eu quero ferir
A cidade com meus rastros ridículos (eu acho inclusive
Que até os dois bichos cansarem de latir e correr
Em círculos, pode ser que eu ainda tenha tempo o bastante -
Tempo suficiente pra talhar com a lâmina do meu corpo
Um corte fundo e insignificante, engolfando a praia
Em nada, pra que depois o mar venha e lave tudo com a água.).
SEM TÍTULO E
de pé, contra a privada – esse fosso
de água morna, rasa superfície
em que me vejo refletido: um vaso
de osso que contem estranhas flores.
Ainda escuto ela dedilhando
o violão no quarto enquanto tento
me concertar pra não molhar a porra
do tampo todo - Volta e meia eu
penso que os tempos verbais não estão
fundados no presente, mas no instante
anterior: Quando eu estava lá
e as curvas do seu corpo se estendiam
no escuro como uma escarpa de pedra
que corta o mar, lembro que questionei
qual seria a metáfora de qual.
Agora, com a descarga, eu imagino
por que que os moradores dos atóis
guardam os restos de naufrágios antigos
do gozo diabólico da maré
(essa língua molhada que carrega
beijo após beijo, os cacos, as partes,
barcos despidos de cascos, de velas,
meu corpo quebrado e também a idéia
de um corpo inteiro - meu nome e o avesso
de mim). Essa maré é uma mulher
e ela despedaçou meu coração.
Agora eu estou pronto pra você.
, QUANDO FECHADOS, NÃO SÃO NADA DESIGUAIS
1.E retirada a criatura, vimos
que não havia jeito de caber
a cauda toda no corpo do cara.
2.Certos tons de cobre
não escondem tanto
a palavra negra
que sustenta todas
as outras palavras.
3.Semanas se passaram sem que descobrissem
que os dois ficaram lá, soterrados na neve.
4.É difícil
colocar
Kierkegaard
num poema
sem fazer
dele o último.
5.Sem nunca cortar os pulsos -
ainda que o sangue sempre
procure saída pelas
pupilas já dilatadas.
CANIBALISMO DE 7 PEDAÇOS
“é um corpo sutil, mas é corpo”
J.Lacan
“mas na carne é imortal”
W.Stevens
I
Perdestes teu biquini numa onda
na praia de Copacabana
e te descaldastes do mar bem quando
passava eu na minha ronda
habitual. As tuas vestes (mínimas)
pararam aos meus pés. Surpreso e
um tanto assustado com o que via,
rezei baixinho contra a besta:
“ó vazio das cascas de urucu,
velho pai uivando dentro das árvores,
dissolve essa miragem contra o fundo e
dá-lhe um nome qualquer, como Juçara,
Raimunda ou Maria Conceição.
Transforma essa angústia - esse nu -
no Bispo Sardinha, ou num salmão,
pra que eu possa escrevê-la no menu”
II
Mas permanecestes estatuada
no sal do mar - Teus seios mansos
aninhados sob os braços, a água
te vestindo a cintura e então
descendo a saia invisível aos teus pés.
Eu quis morrer e me esconder
atrás dos olhos, confrontar de viés
o teu corpo - tampouco sendo
tudo o que há e nem por isso uma parte
menor que o todo - a violência
de não reduzires quem és a nada
que eu já tivesse visto, gente ou
bicho. Meus lábios, não mais meus (de deus
ou do diabo - não sei qual
dos dois é capaz de tomar por seu
o que é dos homens), descolaram.
III
Que a carne pode vir a ser saliva -
ainda que as ondas precisem
de anos pra dissolver a pele fina e
chupar os ossos até o fim -
é dado. É claro que um caldo só
não levaria nunca nada
além de um biquini e dos meus olhos:
Eu tinha a boca escancarada
e isso me bastava. Isso e a lenta
baba escorrendo até o mar,
formulando nós dois numa sentença
eterna à falta de sintaxe.
E lá estávamos nós, tu e eu,
o maiô e os olhos na areia,
e duas bocas partilhando a mesma
água, o mesmo sal, sem saber.
IV
Mulher, tu que carregas enrolados
na língua os nomes de deus:
por que que justo o auge do embaraço, o
teu jeito de quem se perdeu
das roupas me lembrava mais do mar
do que olhar pro mar? Porquê?
Nathália, conta-me, se sabes, qual
de nós dois é o Jaguaretê?
Por que que tudo o que não era carne
estava agarrado nos galhos
dos postes, rosnando alto para a tarde,
cego e com as asas fechadas?
Ah, os corpos cheios de porra, amor,
as constelações elas mesmas
olhando com impulso nomeador
pro céu, dando nome às estrelas!
V
Anatomicamente, o inverso
de falar é comer, e não
escutar. O teu perfume disperso
pela orla e uma profusão
de acidentes de trânsito, mas tudo
revolvia mesmo é entorno
da crueza pulsante dos teus músculos
de gazela. O caçador,
na verdade, não era eu, mas quem
quer que seja que por debaixo
da tua pele me chamava ‘vem!
vem que o inverso de falar
é comer e etcetera..’ - eu que era
a presa. Eu que era o alvo.
Acuado, te ataquei, fui aos teus pés,
ao invés de ir na jugular.
VI
Com o tempo se aprende a descolar
da cabeça o couro e os cabelos.
Com o tempo, porque o tempo é que dá
a impressão de haver consistência e
consciência nesse bando de órgãos
embrulhados para presente -
amarrado com laço para fora
em uns, e, em outros, ausente.
Sacrifício é entender que o nó é cego
e que o jeito mesmo é rasgar
o papel. E eu tinha o teu - hm-hm - ego
entre os dentes, já mastigado
e sem tinta, teu corpo desmanchado
nos meus braços. Mas tu, tão quieta e
bela, já sabias não se tratar
do teu sangue, das tuas pétalas.
VII
O resto dá o nome de todo o resto:
O estômago cheio de água,
os olhos cheios d’água, e pela fresta
da boca escorriam palavras.
Da tua imagem só o ponto cego,
que era eu, sobrou. O resto.
Um homem de pé, bem onde o eco
daquele instante entorta o verbo,
onde o espaço se curva, e se aninha
nos traços sujos e modestos
do calçadão. Copacabana, assim,
fica de mensagem, um resto,
para os passantes. Um fiapo resta
nos dentes e é a prova última,
final, de tudo. Mas eu mastigo esta
carne, e ela não acaba nunca.
ATÉ (ESSAS
Preocupada ainda com uma carta
ao mundo, eu sei. E, embora tudo
continue parecendo absurdo -
tedioso até (essas piruetas
incontáveis, esses giros sem fim
num espaço que –convenhamos – não
comporta lá tanta animação
(às vezes parece que essa palavra
funciona mais como motivo para
tornar o conceito de ordem mais
colorido (deus! Será mesmo isso?
7 HRONIR ISOLDINOS
O primeiro: sob a cama.
No banheiro – o segundo.
Um dentro do violão e
outro no criado mudo.
O quinto está entre os livros e
o sexto não está visível.
O último, eu não sei.
Certamente dois acordes:
ré menor e si bemol.
Uns pés descalços dançando.
Talvez um pouco de sangue.
Talvez um pouco de tinta.
Nenhuma fotografia e
o melhor verso que fiz.
O sol seria uma escolha.
A melancolia, outra.
Uma saída é a cova ou
outro cigarro vazio ou
outra lição de poesia ou
um prato cheio de cinzas.
Enfim, a sétima escolha:
Tinha uma que dormia e
uma outra só deitada.
Tinha aquela de vestido e
aquela quase sem nada.
Uma comia uma rosa e
outra mentia e outra
não sabia mais meu nome.
Primeiro: abrir persiana
e ligar ventilação.
Depois, limpar todo sangue
de paredes e de chão.
Substituir lençol
e margaridas no vaso.
Por fim, rasgar meu bilhete.
Se foi e bateu a porta,
abriu e virou a chave
e viu que estava na hora e
levantou do chão a mala e
abriu devagar os olhos.
Beijou com muita saudade e
então me disse: eu te amo.
Paris engoliu a Maga
e na vitrola tocava:
“Black eyed angels swam with me”
e as estrelas e os sinais
piscavam entre as pessoas
e havia ali também outras
vitrolas, sinais e estrelas.
THE END HAS NO END
Última casa do tabuleiro, na beira
do mundo: torres, bispos e peões em bando.
A rainha negra e o rei branco dançando
sozinhos - A caça de amor é altaneira.
Então o rei come a rainha que, sufocando,
engole o tabuleiro e se engole inteira:
o jogo de xadrez é só uma distração do
fato de que todos são peças de madeira.
*
Gabriel Tupinambá nasceu no Rio de Janeiro, tem 23 anos e mora atualmente em Londres, onde estuda cinema. |