GONÇALO M. TAVARES
PUDOR EXCESSIVO E O MÉTODO
PRIMEIRA PARTE: SOBRE O EXCESSO
Primeira imagem
Num livro de Jünger.
"«Oh, meus queridos filhos, encontrei-vos enfim!»
Esta expressão dita por uma mãe diante dos caixões dos
seus dois filhos mortos é relatada esta manhã nos
jornais."
Não ler os jornais. Fechar o jornal. Odiar o jornal.
Segunda imagem
O homem que não sabe ler avança apesar das inúmeras placas
que dizem (que gritam): PERIGO!, PERIGO!
Como não sabe ler nada percebe e abre a porta e avança, e
no meio do perigo faz o que tem a fazer. O quê? Nada de
complexo: a vontade de urinar não é uma coisa delicada, é
acção de macaco, antiga, um acto que nunca honrará a
humanidade e as boas maneiras. Pois bem, no meio das
placas que gritavam PERIGO!, o analfabeto urinou.
Abotoou depois as calças; alguma urina (pelo menos o
cheiro dela) ficou na mão; alguns vestígios nas calças.
Homem desastrado nessa velha arte, e pormenorizada, da
manipulação íntima. As mãos cheiravam a urina; regressou.
Cá fora, dois senhores receberam-no com insultos. Que
aquilo era um sítio perigoso, que ele correra risco de
vida, que era estúpido, que não sabia ler, e os ânimos
exaltaram-se de tal maneira que os dois senhores começaram
a bater no homem que não sabia ler. Defendeu-se como pôde,
o homem, e defendeu-se bem, mas a defesa enojou mais do
que magoou: cheirava a urina, todo ele.
Vieram mais senhores e bateram no homem, primeiro
continuaram a bater, depois prosseguiram e depois
terminaram. O homem ficou caído no chão. Não se mexia. As
pessoas desapareceram; um leve vento não.
As placas de: PERIGO!, estavam para lá, para o outro lado,
mas o homem havia sido morto neste lado, no lado em que
não havia perigo.
1.
Sair desse lugar normal
Tornou-se um lugar comum, esse: mudar de vida.
Um livro ou uma obra de arte que façam mudar de vida. Já
se transformou em recado para empregada doméstica: Por
favor, antes de sair, não se esqueça de mudar de vida.
Talvez já não seja suficiente. Mudar de vida já é normal.
2.
Perigo
Diga-se que aquilo a que chamamos perigo define o excesso
por excelência; perigo é esse a mais que não
compreendemos e não dominamos e que põe em causa, não as
nossas opiniões estéticas, mas a nossa vida.
A arte mais excessiva é a arte que põe em perigo. A que
ameaça a vida e não apenas as opiniões sobre ela.
Morrer, poderia dizer um cínico, é mudar de vida; e muito.
3.
Chão de artista
Os humanos nascem para ficar em pé: se não o conseguirem
fracassam.
Um artista nasce a meio da sua vida de homem (ou a um
quarto da sua vida, ou a três quartos - como saber?) e um
artista nasce para não deixar os outros homens em pé;
nasce para os abalar; e abalar é fazer com que os outros
não suportem estar levantados, é desequilibrar, é pôr em
causa milénios de avanços musculares e ósseos, é fazer com
que o contemplador não pareça bípede, que trema, que tenha
medo, que se desequilibre: é fazer mexer o chão.
O artista nasce para fazer mexer o chão.
SEGUNDA PARTE: SOBRE O EXCESSO
Nota 1: A posição das máquinas
Comecemos: o excesso é um elemento que existe apesar das
máquinas, existe contra as máquinas. Nenhuma
máquina é excessiva.
Ernst Jünger fala na "energia segura" das máquinas;
poderemos ainda falar na energia previsível, na energia
que dá resto zero. E só não dá resto zero, só não dá
certo quando avaria. Uma máquina excessiva é uma máquina
avariada. Porque as máquinas foram construídas - e são
ainda - para controlar a perturbação do mundo, para
colocar uma rédea eficaz em redor do estúpido pescoço do
aleatório.
Nota 2: A posição das máquinas
Não queremos acontecimentos que nos tratem como estúpidos
(como nos tratam as surpresas), queremos sim introduzir a
racionalidade nos acontecimentos do mundo, e daí as
máquinas.
As coisas acontecem com uma racionalidade, com uma razão
no seu sentido primeiro - razão de cálculo que coloca em
relação dois números.
A razão humana é então o que, em última análise, se
consegue resumir a dois números; e esses dois números
lutam ou distribuem segredos entre si, e depois
acalmam-se.
E é importante afirmá-lo: a razão é a relação entre dois
números, não é a relação entre um número e uma catástrofe,
entre um número e um louco. Uma catástrofe não é racional;
não pertence às operações que dominamos.
Nota 3 - A posição das máquinas
Uma máquina excessiva é uma máquina perigosa, é uma
máquina má. Porque não a controlamos. E pelas
razões de sempre: não é da nossa carne.
Máquina excessiva, eis o perigo: tem à partida outra
carne, e essa carne, para mais, está desarrumada,
descontrolada; não sabe como parar - é imprevisível.
O pesadelo para a tecnologia não é o decreto que impõe o
fim das máquinas, é o aparecimento da Máquina excessiva.
Da máquina excessiva que dê origem a outras máquinas
excessivas. Da coisa se descontrolar no mundo que apareceu
para controlar.
Nota 4: Sobre o acumular
Acumular é uma palavra neutra que pressupõe um somatório,
uma avidez no acto de guardar. No entanto, acumular
pressupõe também segurança no objecto acumulado. Só
armazenamos o que nos tranquiliza agora, e para os
próximos tempos. Acumulamos dinheiro, casas, projectos: e
com tais armazéns mentais ou físicos, relaxamos. Mas não
acumulamos excessos, não acumulamos energias não
afáveis.
Precisamente: o excesso é uma energia não afável.
Não podes acariciar o excesso como fazes ao teu cão.
Ficarias sem pernas.
Nota 5: Sobre esta ciência - a arte
O velho Bloom do velho Joyce tem uma definição de ciência
que me parece perfeitamente justa porque suficientemente
instável. Diz o bom do Bloom:
"Ciência. Comparar os prazeres que cada um experimenta."
Olhemos para a arte. Diríamos estar na presença de uma
ciência que mede os excessos, que mede exaltações,
sobressaltos, que mede - para darmos uma imagem exacta e
com o rigor necessário - que mede, então, a dimensão
emocional da palavra MAGNÍFICO em sete cidadãos que a
repetem frente a uma obra de arte. Comparar os prazeres é
uma perversão ligeiramente necessária. Ou uma necessidade
ligeiramente perversa.
Nota 6: Sobre esta ciência - a arte
Digamos: trata-se, em arte, de promover uma certa e boa
ciência Bloom. Ou seja, comparamos os prazeres que
cada um experimenta e depois dizemos as fórmulas comuns de
uma Física emocional. Quais as fórmulas? Aqui vão:
Que bom, que mau, que neutro!
Medimos, se necessário, a excitação de um grupo de
excursionistas que faz fila para assistir a um quadro
clássico como se assiste a um filme moderno: exigindo que
a pintura se mova, e muito, para não aborrecer.
Mas a pintura à tua frente não se move, a tua cabeça à
frente da pintura é que deveria: mover-se. E mover-se a
grande velocidade. "Sou rápido ou nada", dizia o Senhor
Teste.
Nota 7: Sobre o método e o comboio
A arte sabe que o excesso depende da norma, que o abuso
depende da média aritmética.
A ARTE PRECISA DO MÉTODO COMO O CIDADÃO MAL COMPORTADO
PRECISA DA LEI.
Necessita ainda dessa sinistra previsibilidade. É
necessário que o comboio inteligente chegue a horas!
Sem esse comboio inteligente que atravessa milhares de
quilómetros e chega, ao minuto certo, ao destino, nada
sobraria para os artistas.
Felizmente, a profissão de relojoeiro ainda existe, e os
relojoeiros procriam, por vezes entre si, outras vezes
misturando-se com amantes de outras profissões - o que
aumenta a probabilidade de se multiplicar o interesse
atento pelos ponteiros sensatos que sabem cumprir, e bem,
os seus deveres.
Se não existissem máquinas, não existiria arte. Os
artistas estariam ocupados no acto meticuloso de fazer
coincidir o ritmo da roldana com o ritmo do desejo do
cidadão. Felizmente não.
Nota 8: Sobre o Belo e o Profundo
Robert Walser, aliás, o Director do Instituto Benjamenta,
instituto onde o senhor Jakob Von Gunten aprendeu quase
tudo o que lhe é útil para não dar nas vistas, o referido
director, pois, numa das suas lições rápidas disse, ao
senhor Jakob: "é possível esquecer o mais belo e profundo
antes de contarmos até três."
O excesso, o grotesco acontecimento, eis o que pode fazer
esquecer o mais belo e profundo. O excessivo faz esquecer
o belo; e só contempladores muito treinados - mas como são
excepções! - poderão esquecer o excessivo por estarem em
frente do belo.
Porque há na beleza e na profundidade algo que remete para
um barulho isolado de todos os outros, um barulho que não
contacta com o nosso ouvido (e a que normalmente chamamos
silêncio).
Jakob von Gunten, por exemplo, "acha divertido estar à
escuta de tudo aquilo que quer passar em silêncio." Mas
como é preciso paciência para esperar! Porque
precisamente: o excesso é tanto que só os mais atentos
conseguem detectar o imóvel e o silencioso. Para estar
atento é preciso ter tempo.
Nota 9: Sobre a importância das questões
As questões são importantes.
Uma questão é precisamente a exibição de uma coisa que
está a mais, que não está resolvida, é a exibição de
um excesso: sobrou isto - o que faço com isto, com esta
coisa? Qualquer questão - desde que não tenha resposta
imediata, claro (porque as questões com resposta imediata
não são questões, mas respostas elas mesmas) - mas
qualquer questão verdadeira, dizia, desassossega, torna
inseguro o questionado. Desassossego benigno, este.
Nota 10 - Sobre a arte contemporânea (e o seu preço)
Num pequeno texto de "Cultura e valor" Wittgenstein
questiona:
"Seria possível atribuir preços aos pensamentos?" Eis uma
grande questão.
Eu diria: grande parte da avaliação da arte
contemporânea passa por atribuir preços aos pensamentos.
Nota 11: Sobre os pensamentos e as coisas
Já se sabe que os pensamentos, existindo em algumas
cabeças, existem daquele modo classicamente invisível:
olhando atentamente para o focinho do touro e para o rosto
aplicado do filósofo só por obra de um grande preconceito
dirás: é visível que um - o filósofo - pensa, e que o
outro - o touro - não pensa. De facto, podemos comparar
estéticas, mas não comparar pensamentos. Vistos de fora, a
cara e o focinho revelam igual inteligência. Porventura, é
certo, talvez a possibilidade de sorrir evidencie algo, e
defina uma certa diferença, mas ainda assim talvez não
seja suficiente: é muito vulgar - no meio de massacres - a
existência de um calmo sorriso entre carrascos.
Ah - dirás - mas o pensamento é muito importante. E é.
Daí o seu preço.
Nota 12 (seis de cada lado): simetria e excesso
Quando o lado direito é excessivo e o lado esquerdo
excessivo, tanto excesso atrapalha-se um ao outro;
atrapalha-se de tal modo que os dois lados se anulam na
sua qualidade básica. Dois excessos transformam-se numa
normalidade simétrica.
Se construíres um pilar excessivo, ele assim permanecerá
apenas se tudo em seu redor for normal, sensato, e
controlado.
Não há nenhuma coisa em si que seja excessiva, o que está
em redor é que é neutro.
Nota 13: Sobre o método
Há por vezes na arte essa tentação do sobressalto, pelo
dar o que as pessoas não estão à espera de receber; como
se o acto de surpreender tivesse haxixe, e neste o artista
ficasse viciado.
Vem mais ou menos a este propósito, mas podia não vir.
Wittgenstein relata um episódio do quotidiano: "Quando
cheguei a casa esperava uma surpresa e, como não a
encontrei, fiquei, é claro, surpreendido."
Se não for utilizado em excesso, este pode vir a ser um
bom método.
*
Gonçalo M. Tavares,
poeta português, nasceu em 1970. Em 2001 publicou a sua
primeira obra:
Livro
da dança, pela editora Assírio e Alvim. Recebeu
o Prémio Branquinho da Fonseca da Fundação Calouste
Gulbenkian e do jornal
Expresso pela obra
O
Senhor Valéry (Editorial Caminho, 2002) e o
Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de
Escritores,
com
Investigações. Novalis (Difel). Publicou
O
homem ou é tonto ou é mulher e
A
colher de Samuel Beckett e outros textos, ambos
na Campo das Letras e adaptados para teatro. Em 2003
publicou
O
Senhor Henri (Caminho).
O
Senhor Valéry foi traduzido para francês, com um
prefácio de Jacques Roubaud, e editado em 2003 pela Joie de
Lire. Publicou ainda os romances: Um homem: Klaus Klump,
em 2003, e A máquina de Joseph Walser (2004), pela
Caminho.