Sísifo
I – Sobe o monte
A lama amarrada nos dedos impede os caminhos.
A densidade da dor é desenhada por calcanhares.
Ao redor, apenas o vento e o borbulhar do chão.
Arrasta os pés na lama
A alma pegajosa de barro e suor.
Nada pretende a pedra que empurra o corpo.
É apenas força e peso
De história e retardamentos:
Erros compactados nessa íris de mundos.
Quanto mais o espaço busca,
Mais a morte, o corpo, ao chão aprisiona.
II – Passo em falso
O rosto esfolado no chão
E as narinas entupidas de lama.
Sem sustentação a rocha cai sem peso sobre a nuca,
Que permanece arrombada por palavras.
III – Corpo apodrecido
Da rigidez ao inchaço,
Do inchaço ao despedaçar
Dos tecidos entre gazes e vermes.
A carne de Sísifo se espalha pela lama,
Sendo incorporada à massa orgânica de seres imperceptíveis.
Apenas esse fim esperou Sísifo
Para sua carne rejeitada pelos abutres.
Canção do Anjo Exilado
O vinho esquenta na taça abandonada
e os olhos acinzentam a tarde.
O namoro entre o céu
e as ruas,
mas isso foi há muito tempo;
quando ainda cantava,
a voz rouca entre nuvens.
Pedi que fosse embora
mas você singrou meu ventre
com o amor dos homens.
Então plantei violetas em tua cama.
Mas eu ainda quero cantar.
Os sinos chamam meus dedos,
o suspiro sonolento dos mortos
evoca a noite emaranhada nos meus sonhos.
A calma de se abandonar entre o pó
e o cansaço do caminhar.
O vinho vai desaparecer
e
talvez
eu com ele.
Mas antes que a loucura acometa os olhos,
seguro seus dedos.
Abandono a força das fibras.
As asas cansadas de impedir a tempestade –
o enfraquecer da tinta nos sonhos.
O passado se avoluma
e não se detém no tempo;
quer o espaço das ilusões e dos sentidos.
Emudeço de ver,
alguém me chama;
esqueço que sou,
permaneço ninguém.
Mas todos me pertencem.
O anjo que fui se dilata na pele
que escorre sobre a carne.
Vou moldando o grito dos séculos,
mas eles se afogam na minha boca
que se amarga
nesse incenso de fel.
Os pássaros se escondem no negrume dos ares:
você é um de nós e está livre.
O deus ainda dorme sobre a relva
que plantei para os amantes –
a dor do inevitável me consome
reanima o fogo
que transformará o tempo em cinzas.
Abandono os pés sobre o mar das almas.
Nada mais é desejado;
o templo se encontra em ruínas.
O jogo de máscaras
afundou no esquecimento dos rostos.
O lodo das essências foi drenado por raízes profundas,
que
falos ágeis como dedos
a lótus do meu ser
pelo infinito
teceu
como uma rede de ilusões
num labirinto de tempos e pesares.
Fiz o que do meu ser esperavam.
Anoiteci as esperanças,
plantei discórdias,
iluminei os olhos da mentira,
desamarrei os laços
e corroí
das esferas
os fundamentos.
A tempestade arrasta as asas para além,
mas meus olhos querem o mundo
e o seu desapego,
a sua catástrofe.
Você é um de nós e está livre.
Dormem abraçados os meninos
nus e frios
sobre a pedra que os pais abandonaram
cinzas
se encolhem sobre o ventre um do outro
a lua dança sobre as nádegas arrepiadas
a pedra cai
não sabem que sustentam o mundo com seus sonhos
com suas cólicas
e com o óleo santo de seus lábios
Definham no éter
O rio secou
e a nascente se perdeu entre as presas de um dragão.
Mas eu só lamento
aquilo que não posso conhecer
Você é um de nós e está livre.
Nas minhas mãos pousou um pássaro que morria.
Esqueci o choro e o venerei
comendo sua carne,
queimando suas penas.
Hoje, a cada estação,
ele se alimenta com minhas vísceras,
brinca com meus órgãos,
paralisa meu ânimo.
Meus movimentos retidos na flacidez dos nervos;
permaneço estático, olhando a tempestade mais perto das asas e das almas
[frágeis do mundo.
Inflo com os ventos,
sinto os destroços da civilização
– numa gigantesca onda –
avançar para o fim;
antes que o futuro seja,
serei arrastado até ele.
Mas não tive a escolha tolhida.
Exilado entre os gritos e o asco,
deitei minha divindade abandonada.
Transformei minhas asas em armas e a essência em ferida gangrenada.
Estou e os olhos antes
Os gritos giram espectrais pelos tempos
e fora destes existo
– todos comigo –
Mas sozinho serei despedaçado
como seta vergada
no arco rijo
– e todos comigo –
do vazio
E, nele, semente do refeito.
Vontade de semente,
ser o que fonte
– sem luz –
só energia:
potência.
Abandonar as ondulações de súplicas
o mar
e levar comigo
o que couber no peito e sob a pele que desmancha ao forte vento e gira por
[todas as esferas deste mundo em camadas
Abandonar o que foi exilado
do exílio da carne
Ser além da visão o que se quer visto
Incensar os sonhos do chão
com sonhos de abismo
Você é um de nós e está livre.
Visito as sombras depuradas no ventre em chamas.
Sou vapor e o olhar não é importante;
continuo visando o lixo que acumula abaixo dos pés desse Sísifo desatento
[enquanto sou sugado entre saliva e poeira pela boca do nunca.
Mas não sou mais e estou sem permanecer -
vinco das brincadeiras dos homens na rocha que perde espaço no tempo que [criou.
Livre, determino pelos tempos minha extinção.
No exílio de mim mesmo não há lugar que me detenha.
Você é um de nós e está livre. |