ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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ISADORA MACHADO

 

 

 

 

misantrópolis 

 

[relógio] 

no furtivo do instante-já

eu tenho-te todo pelo tato

falésias de sonho, abismo, corpo.

 

meu tamanho começa no toque

deste teu dedo cheio de tempo. 

 

[útero] 

engravidei-me de mim.

tão logo não preenchida,

abortei-me por instantes.

 

revi meu reflexo pelo

turvo do vaso:

- arredia, arrebatada, fétida.

 

eu, grávida de mim.

 

revisei-me por completo

e roubei, de cada pedaço

a métrica muda da despedida:

- catártica, constante.

 

rarefeita, me fiz refeita

de tanta multidão:

- misericórdia, amém!

 

engravidei-me de mim:

- restos do rosto passado. 

 

[phármakon] 

peripécias nas carícias nunca foi inovação;

a ternura nos incidentes estaria sempre prevista.

 

mola de toda gangrena da alma,

se faria todo-presente o descaso do afeto.

carinho sem rima seria,

todavia, por toda rua,

perder-se no impossível da língua.

 

e eu, no entre-sem-meios,

via de exceção seria doce veneno.

 

logos eu, que odiaria ad perpetum

este o futuro do pretérito, só por ser imperfeito.

logos eu,[tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil].

 

phármakon a destilar palavra:

me faria continuamente bálsamo,

fazer-me-ia perdida-peçonha.

 

espraiamento do discurso,

toxina do logos:

haverá sempre estilhaços do fim. 

 

[errância da carne] 

sinto alta a fome de homem,

fome de g-ente que freme.

estou anoréxico do alter-apetite.

do lobo-ânsia, da carne-humana.

do derradeiro querer, da provisório falta.

do pesar que não pesa, do dente que lesa.

 

não sinto sentir angústia;

não vejo querer na querência.

fato sozinho não pára de pé**,

e na pessoa-vácuo o desejo não reverberra.

inexperiência na dor física, indestreza na dor existencial:

ela agoniza a inexistente ferida, estertora a vivificção do nada terrestre.

 

nós, os mais da meia-noite,

vivemos da angústia de fome de carne.

felizofia da guerra, logofobia de ação vazia.

 

de agora em distante, só respondo ao ceticismo

que fervorosamente me responder: tentemos!***

recuso qualquer cor vadia, pois

preciso de cores que ajam.

 

de antes em diante, só retruco o moralismo

que nietzschedamente se perguntar: por quê?

passo ao largo de qualquer perenidade,

pois careço de penas que saibam morrer. 

 

[dicionário] 

trôpego de tanta ausência,
me detenho sóbrio para tentar o acaso e,
mudo de tanta cegueira, me ponho lépido a atormentar o caos.
- afagar a embriaguez do sol, perscrutar o infinito da plêiade da forma.

atentar para o sombrio da presença,
e provocar a reverberação no nada terrestre.
perene, atenciar para o ébrio das coisas
e, sozinho, codificar o mar.

permitir a longevi[r]tude, a latitude, a plenitude
e, paraíso do tempo, ser o próprio ponteiro na vida:
- da dor domar o passo, do riso medir o santo.

do ser, nem o que for sereno;
do verdadeira, só o mente.

estragável sempre, deserto:
- ter na vida a razão nômade da senda.

 

*

 

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