ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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IZA GONÇALVES QUELHAS

 

 

 

 

 A  dor

(1 Introdução)

 

Há dor no corpo,

performance,

a nadadora,

peixe humano,

escorrega sobre as águas,

suave, bela,

tal enguia se move.

 

Nos pés do bailarino,

volteios, calos, o peso único do corpo que sustenta,

ergue

a taça, o dorso, os braços e mãos que abraçam o vazio.

 

No ventre da mãe dói a criança em processo,

sem nome ou

acesso, corpo em criação,

vestígio exato da

contínua vibração.

 

Há dor no olhar do vidente,

excesso de luz ,  

contorno de objetos dispersos,

brinquedos inertes,

num tapete sem fim,

pontiagudas estrelas

esparramadas pelo chão.

 

Na pena,

sem escolha,

a dor é uma língua,

precede a primeira letra,

contido anuário de palavras

e o esquecimento:

assim se faz alguma poesia.

 

Há dor nos dedos

ágeis da digitadora,

frases, pontuação e

cifras,

sem amigos,

entre os dias, repete

enunciados,

 ilegíveis legendas de

tesouros encontrados.

 

No gesto entre os amantes,

após íntimas conversas,

quando

a pele da vagina sangra,

fina folha de papel tão íntimo,

assinatura do gozo em que se esvai e afina

a pele que não se dá a ver a quem domina.

 

 

2

Há dor nas pedras e terra,

nos telhados de casas soterradas;

onde crianças dormem, enlaçadas,

entre

móveis, tijolos partidos,

 louça quebrada,

mesas sem serventia.

 

No som da escavadeira,

braços gigantes a

escavar, sem sucesso,

imersos em terra e lama,

lixo e uma legião de nomes,

 

sem morada.

 

Há dor na chuva,

poeira anônima,

à céu aberto,

camadas de terra e lixo

ocultam o haver sido um dia,  

sem repouso,

sem rituais, 

até que,

outra chuva

(e o esquecimento)

venha (des) soterrar. Outra vez.

 

 

NO ÁLBUM

 

A flor seca,

à esquerda,

acima,

entre,

sobre os

retratos,

 

é saudade

falta

lembrança  talhada

em mimo

pálido rosa.

 

Cada pormenor

das ausências

depois

de nos partirmos

em pedaços.

 

 

EMBAIXO

 

relevo,

ainda se ouvem

o riso,

gemidos,

chamados,

ritmos,

espasmos,

a língua viva

a dizer

palavras

de adeus.

 

 

UM ROSTO ALTO

 

Esculpido

o rosto ressurge, vívido,

alto, num lençol listrado.

Castanhos, abertos,

olhos espelham-se

na parede a frente.

 

Em retardo, a

seta do tempo

atravessa o leito,

nele, o rosto

adormece.

 

Ressurge,

é outro cenário:

flores e gotas de

adeus.

 

Um véu fino,

transparente

sobre a

face

 

interrompida.

A boca

quer concluir

a frase,

a mão,

refazer o

gesto.

 

Não

mais.

 

Já na terra da

doce bravura

dos sem nome,

descerá até o fim

a caixa sem música

a  levar os olhos seus .

 

(O sol desconhece a terra,

nela ilumina

Um corpo que desaparece.

 

A letra imita

a tartaruga,

procura águas límpidas)

 

 

ILÓGICOS ZOOS

 

Azul.

nele, a manhã

recorta

contornos

em linhas finas,

um elefante a nascer

num corpo de mulher.

 

Em algum momento do dia,

a mulher ouve ruir pétalas,

sob a pele.

Nela, o movimento desenha.

Repara,

é

denso, marca a superfície dos braços,

percorre seios maduros,

puro viço:

elefante adormecido.

 

(ambos, seres contidos)

 

A mulher não

lambe à exaustão a porção de mel

indispensável aos dias de tédio,

sorve água,

tenta,

outra vez,

ser mais magra,

adequar-se

ao espaço concedido.

 

(Mulheres

habitam berços imaginários,

neles, paridas ou grávidas,

duplicam-se.)

 

O elefante feito em

finas linhas de um corpo

contido

quer levantar as patas,

quase círculos,

esticá-las,

fazer ruídos,

sacudir  as orelhas,

mas é tão lento,

move-se;

é barca imensa.

 

Do outro lado da fonte

de um espelho abandonado,

ao elefante é dado lembrar:

traz uma mulher sob a pele enrugada,

quieto, ouve.

 

Há também no elefante uma mulher que o habita,

- é direito ter

um dentro e nele uma mulher nascida,

a correr

como quem liberta

a pata de um elefante distraído.

 

Pisa a flor,

esmaga a grama,

abala o chafariz da praça,

altera o roteiro dos que passam,

os olhos das crianças,

faróis para labirintos,

barcas intranqüilas.

 

Mas tudo cessa,

e a mulher passa,

(cheiro de nuvem),

sobre as pedras calcinadas,

tropeça nas pernas e

avança,

saliva,

quer sair.

 

 

Dentro, as patas,

aos poucos,

se recolhem,

tímidas, às coxas longas:

 

A quem observa é

dado ver,

no dorso, um desenho

(elefante em alto-relevo).

 

Guardá-lo numa caixa,

música à espreita

da mão.

 

 

 

A SAUDADE É UMA HÉLICE

 

a girar entre os dedos,

muda as páginas do livro,

aguarda a volta do

que foi partido,

em pânico.

Talvez.

 

A sua voz é aroma,

hálito de mel,

na língua

adormecida.

Palavra 

inaugura

o tempo na vazante,

a terra se retrai,

o sol

detalha os

contorno de

ramos de avenca e

seus ínfimos detalhes,

viçosos, à revelia,

descuido,

abandono às avessas,

quando ouço seus passos

(tambores a estremecer os tímpanos).

 

 

Pater (3)

 

para qual lado olhavas

quando a faca atravessou

seu peito?

 

ferida contundente no coração,

aorta escancarada,

corpo na calçada

é tragédia grega.

 

mas é subúrbio,

onde calam as vozes

o murmúrio do castigo.

Há punição para todos

nesse cálice chamado vida.

Calam-se as palavras dissonantes,

tantas versões,

e o silêncio reina

sobre quintais sem fim.

 

Ao longe,

o trem passa nos trilhos

enquanto parece a todos

que enfim dormes,

no chão,

para sempre da lembrança.

 

 

 

 

*

Iza Gonçalves Quelhas é professora de Literatura Brasileira na FFP-UERJ. Publicou A passagem dos sinais (Eduff, 1997), Os laranjais abandonados (Fábrica de Livros/SESC/SESI/SENAI, 2005).

*

 

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