ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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 JOÃO MIGUEL HENRIQUES

 

 

A BIBLIOTECA

em boa verdade, a biblioteca
era naquele tempo um refúgio de párias.
talvez ainda o seja
faz anos que não a visito

os livros sussurravam frases inteiras
e das estantes mais próximas
era possível escutar os seus desaires

escusado lembrar o pó por todo o lado
e aqueles duzentos, trezentos volumes
da honrosa categoria dos
jamais lidos de cabo a rabo

foi lá que me treinei no choro pequeno
e no querer imenso
de fogueiras gigantes com livros

 

O CALOR HÁ-DE CHEGAR À TUA PORTA

o calor há-de chegar à tua porta, irmã de sangue
e lá estaremos nós de corpos despidos
sob a tua videira de espuma

o tempo correrá mais lento, menos sábio
como o vento de verão e a calmaria 

a confusão dos corpos sob a videira
é um conhecimento que urge 

mas essa é a única urgência que nos cabe

 

A MULHER DEITADA 

imagino a mulher espojada sobre a cama
o ventre inchado colado aos lençóis
aqueles que sequei a semana passada
ao primeiro sol do mês de março 

a mulher soletra as letras puras
que compõem o nome das coisas à volta
e muito aos poucos, lentamente,
esmaga-se o esterno, entretanto
sob o meu peso

recolhe então do coito que se segue
uma alegria pequena, memória de origens,
e os lençóis arrepenham-se em pregas que são já ondas

e eu imagino o ventre inchado, já oprimido,
a voz que se perde na nomeação dos objectos
e depois a mulher a afundar-se no sono dos mortos
comigo por cima

 

TERRA 

inverno já um pouco
meio escuro

e damos por nós a pensar na puta da terra.
não tanto no sentido de origem
como seria dizer por exemplo
ir à terra para a matança do porco
mas algo mais físico e dramático
fundamental até
tipo
a puta da terra que nos há-de cobrir a todos 

assim ficamos a pensar, estendidos no quarto

o inverno reproduz-se em cada canto da casa

 

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João Miguel Henriques nasceu em Cascais (Portugal), em 1978. Estudou Literatura em Lisboa, Jena (Alemanha) e Edimburgo (Escócia). Vive e trabalha em Lisboa. Estreou em poesia com o livro O Sopro da Tartaruga (Edição do autor, 2005) e em 2007 participou do evento Tordesilhas, Festival Ibero-Americano de Poesia Contemporânea. Desde 2003 mantém o blogue Quartos Escuros (www.quartosescuros.blogspot.com).

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