ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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JOÃO RASTEIRO

 

 

 

 

O MITO DO SOL E DOS ANIMAIS ÁLGIDOS

 

 

JANEIRO

 

O sol é uma chama cortada,

um astro de luz varado na sílaba

que abre as feridas dos hortos

adormecidos lúzios das crias

que ainda germinam nos açudes

vergados ao peso da blasfémia

a palavra escondida no sangue puro.

 

 

FEVEREIRO

 

O sol está aqui como um sopro,

a terra vem das mãos do sussurro

excitado o bafo dos animais funde-se

entre o transitório e fértil corpo

onde os homens regressam luminosos

os mortos de que se extrai o bronze

iniciando a bordadura dos cântaros

expostos ao calor que seca as vísceras

para um recomeço um violento recomeço.

 

 

MARÇO

 

Na cabeça do sol um céu cego,

não se saberá nunca da metamorfose

dos viajantes ocasionais as garras

expurgando o rosto por debaixo das raízes

que matam os óvulos e imortalizam a pedra.

 

 

ABRIL

 

E o sol desce como um falcão,

um relâmpago ígneo celebra-se

no presságio atalha-se o silêncio

o visível e o invisível das súplicas

que dormem com candeias adormecidas.

 

 

MAIO

 

Um sol de luz inacabada,

a única eternidade no voo das aves

de oiro melífluo onde jazem mágoas

numa insaciável fome o aroma das chuvas.

 

 

JUNHO

 

O sol nas margens da água,

será um torso de substância cálida

voz celebrando assustadoramente a luz

torêutica visão do fogo dos metais

cravados em animais de bocas primitivas.

 

 

JULHO

 

As pálpebras do círculo do sol,

só os anjos decifram os limites nus

das nascentes varais a própria lucidez

nos dias anguíferos asas desarrumadas

sob a rota calcária os sonhos élitros.

 

 

AGOSTO

 

Todo o tempo para seguir o sol,

é este o território do último refúgio

o casulo onde o homem aduba os líquidos

o sémen derramado nas cânulas da carne

inflamada a terra nos caules primaveris.

 

 

SETEMBRO

 

Os animais regressam sob o sol,

movem-se na ressaca do próprio corpo

indiferente ao chamamento das preces

oblíquas constelações ferem o arco-íris

cores de consonância absoluta na respiração

a ilusão da tempestade além das trovoadas

a aurora que se bebe em ritos ancestrais

guelras por onde se expira a luz desabrochada.

 

 

OUTUBRO

 

O sol é apenas a palpitação do sangue,

o peso próprio e contínuo das formas

abertas veias na idade da despedida

as manadas com o fulgor do orvalho

imóvel num vislumbre o pólen amado

instinto o bárbaro fulgor do festim único

espaço em que a sevícia é ressurreição.

 

 

NOVEMBRO

 

Num lugar onde o sol é gémeo,

a terra revelada em veias de crianças

as folhas transbordando de visões

descosendo-se ao ventre delícias de oiro

a dádiva dos girassóis sobre as águas

que reabilitam a memória do barro

naugural dilúvio concentrado no fôlego.

 

 

DEZEMBRO

 

Tem sol adentro tem a voz semente,

como se a sílaba pudesse desassombrar a luz

o cheiro espesso e biófilo das coisas esquecidas

bocas como abóbadas sitiando as luminárias

no eixo do relâmpago os rebentos viçosos

perfumes de todos os bálsamos de Jerusalém

vozes em silício dentro do rosto das águas

a paixão do fogo numa última saudação ao sol.

 

 

BIOGRAFIA

 

E tudo ocorre na melancolia

da sílaba, o casulo emergindo

nas talhas.

Inquieta sofre a gestação

no caule dos rebentos.

O gesto da carne

no linho que lambe a mutação.

Rota, sopro, sístole ou máscara

onde bardos fecundam a sazão

da ebriedade.

E entra nas vozes,

nos hortos, algures no inabitado

onde gravitam tâmaras.

Melífaga

ironia das fábulas, a palavra

mastiga a água adubada no sangue

do amor.

Pois ser bardo e sonhador

é devorar o fogo sagrado, o correr

das chuvas.

A alma desatando-se

sílaba que afeiçoa as matizes do

espanto cheio de luz.

 

Então nu, já poderei morrer

inteiro, exactamente.

 

 

 

*

 

João Manuel Vilela Rasteiro (Ameal-Coimbra, 1965), Poeta e ensaísta, é membro da Associação Portuguesa de Escritores e do conselho de redação da revista Oficina de Poesia, delegado em Portugal da revista italiana Il Convivio e colaborador da revista colombiana Arquitrave. Tem poemas publicados em várias revistas e antologias em Portugal, Brasil, Colômbia, Itália e Espanha. Publicou, entre 2001 e 2005, os livros de poesia A Respiração das Vértebras, No Centro do Arco e Os Cílios Maternos. No âmbito de Estudos Superiores  na Área de Literaturas Modernas (Variantes de Estudos Portugueses e Estudos Portugueses-Italianos), efectuou estudos de Poética e Escrita Criativa, História e Estética do Teatro, História e Estética do Cinema, História da Cultura Clássica, Poética e Retórica, Literaturas Africanas etc. E-mail: jjrasteir@sapo.pt.

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