ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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JOÃO TALA

 

 

 

 

 

 

canto as veias

 

a. as cores da terra

 

fomentava sementes da concórdia

hinos à longitude. cantava

veias ateadas no ventre

içava o sangue das bandeiras

rumo às violetas dissimulando

um mundo ardido na cor rubra

dos velhos panos.

 

 

b. o hino nacional

 

da língua orvalhada

um som ressalta

o sangue nacional.

tomo-lhe o fio arvora

palavra em parto.

 

e são já as sílabas

um pergaminho do

corpo cantado na

povoação.

 

 

 

TONTURA

 

ainda apagam pálpebras de volta à tontura

ainda o sentimento da nossa longa história

a ruína vai da notícia à revolução

palavras mortas nunca mais preenchidas

os rios demorados no sintoma dos países

e tudo passa e o poema indaga

o dia que acontece como uma ruína.

 


 

 

ME RECONSTRUINDO

 

Onde ontem me torturavam

renascem as pálpebras demolidas

posso ver pedras que baralham pedras

posso ver a cor de todas as pálpebras

alçadas do escombro

ou como eram trémulas mãos

adejando outras pálpebras,

 

escombro de mim pedra numerosa

me levanto e reconstruo

o que a mão tem dentro de mim;

encho as pálpebras é porque choro

se choro refaço o sonho, é verdade.

Verdade acumulada de todos meus dias.

 

 

OBITUÁRIO

 

Onde ouvidos repetem pequenas ruínas

sobra o revólver sobre dias túmidos

para decretar morte é como ninguém

para aumentar áfricas laboratoriais e

o latifúndio;

depois dá um tiro na cabeça da história

tal como tropeça no meu palavrão

sem nada para acrescentar à morte

sem nada para contar à vida

sem ser nunca o nome da multidão.

 

 

 

PSIQUIATRIA (I)

 

Reverbero de minha esquizofrenia

dias de mim cuidados

atravessei o Hospital Psiquiátrico

ninguém mais mora lá;

os doutores partiram quando o tempo

                                           [envelheceu

e o princípio pariu o fim - uma estrada

onde passo com o livro descuidado,

sem brio, um tratado de loucura.

É o tempo abordado e paginado

com o sangue na caneta;

o tema das cicatrizes que não foram

                                          [encontradas

porque a enfermeira as escondeu

quando forjava a própria madrugada

 

 

 

PSIQUIATRIA (II)

 

Todos me acham que sofro de miséria

faço de cada história um reboliço.

Mas devagar essa cicatriz banal eu escrevo;

esse ardil de loucos é um poemário;

um documento daquelas minhas dores.

Tudo vai mal, dizem. Tudo vai !

vai a raiva tão simples como fazer perguntas;

vai de passada qualquer maluco palpitando

                                                    [muita gente;

e vão outros palpitando os relógios

                                                  [automáticos:

...tic-tac tic-tac tic-tac...

Os tique-taques nascem das nossas bocas.

Bocas dissolvidas. Noites volémicas..

Os sentidos moídos na rua dos atritos.

 

 

 

O MUNDO RECRIADO A PARTIR

 DOS OLHOS DUMA MULHER

 

Sou a palavra que você não disse

o nome que você não chamou.

Contigo viverei palavras desiguais

palavras ardidas na língua que as prolonga;

palavras perdidas e procuradas

onde tentas o sonho

(não há mais nada para sonhar?)

Sou a palavra que você não disse

uma canção ao maravilhoso.

As páginas perseguem-me e

da retórica colhes os números;

mas os números não dizem nada

- são preocupações do pouco,

sem as contar sem as procurar.

Eu sei, nos teus olhos, mulher

se eleva o pensamento;

dos teus olhos, mulher

Deus recriará o mundo.

Assim fora o começo d'olhos pensados

nas mãos de Deus.

 

 

*

 

João Tala, poeta angolano, nasceu em 1959. É membro-fundador da Brigada Jovem de Literatura Alda Lara, de Huambo. Publicou os livros de poesia A forma dos desejos (1997), O gasto da semente (2000), A forma dos desejos II (2003) e A vitória é uma ilusão de filósofos e de loucos (2005), além do volume de contos Os dias e os tumultos (2004). O autor é médico e atualmente faz curso de pós-graduação no Rio de Janeiro (RJ). 

*

 

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