KAMIKAZE
I.
Provocar o vazio
e dar o salto.
Ir além da linha, dissipá-la
e negar o abismo sem sorvê-lo.
Ser apenas queda
sem escalas.
Deixar o corpo
aceso dentro da hora
e congelar os transeuntes,
os carros, as nuvens
na dança estática do agora.
Deixar-se no poema que inaugura
a tarde da cidade.
E fechar os olhos
lentamente
enquanto o sangue ainda arde.
II.
Olhar através do concreto.
O céu arranhado da cidade.
A hemorragia do ocaso
Ignorada no vôo.
E sentir-se exato
ao verter o enigma.
E não voltar atrás
antes da borda do vazio.
POEMA I
Duas esfinges devorando-se
entre as paredes do silêncio.
palavras
coagulam
junto ao enigma.
POEMA DE QUANDO VI UM MEMINO DE RUA II
Dorme.
um dormir claro,
como dormem as coisas
e nelas um relógio avaro.
Dorme.
o sol suspende-lhe
o meio-dia reto
sobre os ossos
e paira como abutre
velando a caça.
Dorme.
fechado em caroço,
exalando a ruína
na tarde da cidade.
Dorme.
incrusta-se
no branco de meus olhos
ignorando
meu espanto
e o silêncio do poema
apurando-se em sua sombra.
TUMBEIROS
I
As horas se dissolverão
depois da linha do equador.
Num desvão soturno
olhos velam a espera.
II
A carne cala o corte.
Tantas mãos afagando
navalhas, no porão,
antes da âncora e do archote.
III
Indiferente ao traçado
de paralelos e meridianos
sobre a carta. O corpo singra
e sonha o dia da cova exata.
IV
Acender-se dói.
E eles com a treva costurada
ao corpo tendo que descoser-se
ao sol cru do porto.
POEMA DE QUANDO VI UM MENINO DE RUA I
Seu sono,
lâmina em meus olhos,
Derivando
na imundície da calçada
e ele
sendo apenas sombra apartada
LUZIA II
O vinho profuso das horas
apura-se
de tuas pupilas
e todos os sóis
acesos em tua carne
sideram-me
até o cerne dos ossos
OBSERVAÇÃO DOS PÁSSAROS
A Neuza, que também os fotografou
I
Revoando
do ocaso
horas
ensurdecendo
relógios
num chilro sagrado e à deriva
miramos
o sol, mais densa das aves, que
vazando
o teto desta cidade
suspende,
ainda,
no mais alvo, exato,
dentre as cores,
seus: ovo
e
canto
II
De todas
as estrelas insones indóceis
o vôo
Impassíveis
ante
a lua incubando-se
grande mãe
ao ninho de trevas
silentes
vagueando
à ausência
de porto
a palavra
vaso
ancorado sem amarras
***
escalando
num contraponto medonho
a palavra e seus cânticos
na liturgia de
contemplar
o sagrado
fazer-se
do segredo
***
no avesso da luz
só
o fruir da palavra
é como este indizível
resto espelhado
do mito
***
buscando
no fato
à rede de es ti lha ços
o fio que o retome
tem amargando
entre os dedos fuga e
poeira
***
exposta
e o mundo
volúpia concisa
fugindo às horas
sem fim
seu fazer-se da impureza
***
vazando a face
do verso
vaso sagrado
sílabas tantas
patas do mito indomado
***
abra(a palavra)çando
o silêncio
com seus tentáculos
de navalha e deserto
***
pecando quem
acreditando num equilíbrio
sem tensão
o ser
de todo é um balançar-se
à borda do
vazio
***
sustendo
a armação
de segredos
os andaimes
ao redor
exoesqueleto da
construção
***
há algo de poesia
na construção pássaro
rasteiro
que se esvai
fecundo na fábula
precário labirinto
do para
sempre |