JORGE HERIQUE BASTOS
TRAVESSIA
A filha aponta o astro
a remendar outras máscaras
sobre a cidade gasta
– lâmina afiada, fruto descascado –
revela para ti a ponte
que hás de atravessar,
os triângulos de luz
suspensos sobre o rio escuro
unem hipótese e inocência,
atam margens invisíveis.
Dentro dos carros, altos,
trafegam dores e risos
estocados nas faces sonâmbulas
– o ir e vir do alimento
no cordão materno –.
E tu no meio a demolir
as ruínas de outro dia adiado,
o corpo escrito com estrelas e letras
que só ela sabia decifrar.
Rasurando a sua deriva,
ancora numa noite
que nunca terá fim.
TRIBUTO
a Alexander Kovacs
Tantas horas a procurar
um eco no mundo
para descobrir
entre agora e sempre
que estava intacto
repousando no instante,
o seu exato lugar.
Enquanto lias em silêncio
a manhã escaldava os corpos
percutidos de paixões.
Ao fechar o livro
sobrava apenas um verso órfão,
uma imagem em movimento
– o bater da asa descoroando a palavra voo –
que só tu sabias desvendar.
Querias isso:
romper o fruto
e comer o caroço
para ler no cerne
a vida nunca escrita.
Aprendeste
que o tempo e as águas
devoram tudo,
oxidam as mãos
sobre as trevas da página.
E na noite escura do satélite
a fixidez do enigma.
Jamais conhecerás
o som que pulsa no fundo do poço,
o reflexo cego do abismo,
os sóis invisíveis
eternamente paralisados
sobre a paisagem.
Saberás,
quando chegar o momento
de apontar um telescópio
para dentro de ti,
que não se recusa o destino.
Verás a solidão
a polir as suas grades,
a circuntristeza gravando
a cicatriz no rosto deformado.
Debruças-te a cada dia
sobre a espiga do poema
que o olho debulha,
arrancas o vocábulo
e encontras uma só resposta.
Assinas agora:
Kovacs
no esqueleto das letras
que armam a palavra
para sempre dita:
irmão
E mesmo hoje
– sem saber onde estás –
falo ainda contigo
ressuscito-te
para ver o lado branco da lua
o lado negro do poema.
***
(Arvo Pärt)
Duas músicas:
a soberana
que me traz aqui
e outra
interferindo
na partitura do dia.
Uma
fura a parede,
outra
fere o coração do mundo.
O estrondo parte a pedra,
derruba e renova
o que está fadado a partir.
O instrumento toca o seu silêncio,
torna a percutir a nota,
a repetir o mistério.
Todos ouviram
– mesmo sem entender –
algo soar no infinito:
tintinnabulum.
*
Jorge Henrique Bastos (Belém,1964) poeta, organizou o livro A Criação do Mundo Segundo os Índios Ianomami (Hiena, 1994). |