ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

JOSÉ LUÍS MENDONÇA


 

POESIA VERDE 

                     para Carlos Drummond de Andrade

No meio do caminho nunca houve uma só pedra
As pedras nascem na boca e a boca é o seu caminho
Das pedras que comemos as cidades ainda falam
pelos cotovelos da noite Não eram pedras eram pedras
com cabeça tronco e sexo Pariram fábricas
de pedras montadas sobre a língua E as pedras comeram
a pedra que restou no meio do caminho

 

ANOITECE 

Anoitece. Sou um caminho
sentado sobre o sentir-me
pedra, oiro e sangue.
Os dias regressam à sombra
do meu verso afiado.
Velhas de panos riscados
esquecem tabaco na esteira
branca do meu coração.
Anoitece sobre o sentir-me
pedra, oiro e sangue.

 

DE GRAVATA

Homens de gravata à beira-rio
comem mangas geométricas sentados
sobre os rins do meio-dia.

Uma negra sereia aos pés dos homens
come os rins do meio-dia carcomidos
pelas mangas de gravata à beira-rio

 

UM CANTO PARA MUSSUEMBA

Ó mãe dos gafanhotos
sentados na lavra da boca deserta:
quantos comboios pariu a tua fome
sobre tijolos gravados ao corte da língua?
O abecê do tempo sangra no pilão
e a chuva de Abril nos cafeeiros
é a mulher kilombo, dizem
morreu um leão no fogo do teu ventre
onde caminhei de animais na mão.

 

ANJO DIALÓGICO

Me alimento dos claros instrumentos
da água venal das estações
tectos de zinco calcinados
onde a chuva de Setembro polariza máscaras
de um reino mitigado por erosões de tristeza, pó & consternação
Alguns sulcos de emoção asseguram-me este lugar
de anjo dialógico num país de náufragos
engenhos de olhar e ouvidos arrancados
pelo refinamento de submarinos pássaros
São estas palavras a poeira
que a língua bebe à boca do vento
a cicatriz do gesto onde se exila
a escrita de virilhas ao sol

 

O SEXO DE UM ANJO

Uma paisagem triangular com vitoriosos cães de briga
galga o alcatrão branco da língua.
Cântico litúrgico de longos rios submarinos.
Seguro-me de pé ao varão de sal vivo.
As coisas não acontecem por acaso
nem este tic-tac do sangue minúsculo na ponta
dos dedos do mar nem esse brique-a-braque do lazer preciso
da luz verde aborígene em cada olhar de alga.
Algo me diz que um dia ainda me evaporo
no dorso fundo das areias. Serei um conto hípico
sem bátegas de água à cabeça
um olhar de peixes muito pretos
como a origem da humanidade.
Hei-de calar então todos os anúncios
sobre como estar na terra sobre como
reduzir a pó o preço das lavandarias da alma
e ser o sexo sujo de espuma e de paixão
de um anjo na orla da praia.

 

*

José Luís Mendonça nasceu em 1955, no Golungo Alto, província do Kwanza Norte, Angola. Poeta e jornalista, é funcionário da Unicef em Angola, onde exerce o cargo de assistente de informação. Colabora em diversas publicações de seu país e no Jornal de Letras, Artes e Idéias, de Portugal. Ingressou na União dos Escritores Angolanos em 1984. Publicou os livros de poesia Chuva Novembrina (1981), Gíria de Cacimbo (1987), Respirar as Mãos na Pedra (1991), Quero Acordar a Alva (1996), Se a água falasse (1997), Logaríntimos da Alma - Poemas de Amar (1998) e Ngoma do Negro Metal (2000).

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[REVISTA ZUNÁI- ANO III - Edição XII - MAIO 2007 ]