ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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JOSÉ SÉRGIO CUSTÓDIO

 

 

 

 

ANJOS NA PRAÇA DA BASTILHA CONTAM VERSÕES DE NENÚFARES E SONHOS

 

o frágil e terno

balão do amor

flutua no negro céu

sua tênue tessitura:  

 

o esculpir em vento

 seu delicado balé

intricados movimentos

 

(anjos na praça da bastilha contam versões de nenúfares e sonhos)

 

desdobra-se  infindo

por entre o luar 

seu claro brilho

escuro 

 

esgarça-se pelo ar 

sua beleza de pintura delicada 

a pequena fagulha

da frase que o cerze 

se desfaz:   

 

sua refinada arquitetura aérea

cai como pesado bólide e

espatifa-se no chão

 

 

 

 

TIGRE

                                

um outro tigre

desce as escadarias 

e passeia amplamente pelas ruas 

 

um tigre tigre

com sua coloração de vivo

e líquido metal

passeia no desvão

do que imaginamos

 

um tigre de olhos tígricos

arranha suaves

arranha-céus no pulo

salto do tigre que se está gestando 

 

um  tigre (será

 o de blake?)

enigmático e mudo

calmo em sua ferocidade

entretece sua música

 

seu som de tigre que passa 

caminhando como apurado punhal

silencioso e tranquilo

 

de ferozes retina tigre

brilha brilha

o  sim e o não

do deserto:

pequeno objeto de emocionar pupilas 

 

tigre de palavras tigre

de ar e vento:

brilho brasa

movimento

 

tigre de sopro e carícia

que esquecemos (tão humanos somos)

pêlo esguio e selvático

 

tigre de tempo

labirintos e árvores

soltas no espaço da tela

 

tigre: “sonho provocado pelo voo de uma abelha em torno de uma romã, um segundo antes de despertar” salvador dalí.

 

tigre-mulher: tigresa

 

tigre cego sonhado pela

ficção do argentino

 

o tigre de tirésias

que sabia do tigre

 

o tigre que houvera dante

sabido em sua comédia

 

o tigre de carne e nervos

o tigre feito de mar

 

o tigre fatal:

instinto e armadilha

calculada simetria:

 

tigre  

 

 

 

 

 

ELEMENTOS PARA A COMPOSIÇÃO DE UM ESTADO DE NÉVOA E POESIA

                                                                                                                                               Jogo xadrez no caos dentro de um quadro de De Chirico.  Beijos geométricos se desfazem como as areias vermelhas. O movimento é um diálogo oblíquo. Te ver nua foi como ver o céu sem nuvens com a sua força de azul a  devastar as reticências. Aqueles cavalos alados cavalgaram por vertigens e incongruências de mim mesmo. No peito da noite chove.  Chove terrivelmente. A chuva é fina e veludosa sob a luz do poste que estou olhando. O tempo é líquido como a chuva que escorre por meu corpo. O barulho da chuva tem gosto de almíscar. O telefone está tocando. Está tocando desesperadamente há três dias. O som vem de dentro de uma maçã sonâmbula. 

 

 

Atendo o telefone, espaço de silêncio branco e ouço delicadamente a declamação de um poema:

                  

A

                                                                                                         um                         poema

                             declamação                 de                                                   declamação um             poema                                                                              poema:        

 

 

        

Pássaros de cobre 

 

VOAM  

                                                                                                            

vulcão em erupção 

                                                                                                                                        mar de veludo canto de violinos emplumados e sereias líquidas amanhecem a aurora de perfumes delicados no sussurro sibilante de tua leve pelúcia geométrica.

Silêncio escuro.

 

Sons e fúrias e nuances líricas. Helicópteros no céu de néon fazem circunvoluções lúcidas. Qual o gosto de uma palavra? Ana te vejo, e te desejo na cor verde de teus olhos. O vento sopra alucinadamente. Reconhecer-se no azul de tardes insone.  Tempestades de areia.  Folhas de outono compõem poemas nítidos como girassóis despedaçados. No poema entendo palavras que me dizem mais do que significam, palavras que me afagam o cabelo numa tarde dourada. Sei de todas as formas de desatino e compreendo o êxtase que propiciam. Do crepúsculo jorram amplas auroras do inexplicável. Nas sendas das nuvens vejo veredas: Por acaso o poema precisa de explicação? Por acaso o fato de ser inexplicável não é a sua mais completa explicação?  

 

 

 

 

NUANCES PARA SEREM OUVIDAS AO SOM DO SILÊNCIO

 

 

O silêncio é minha palavra.  Espaço branco irreal. Decifra-me ou te devoro. Decifra-me ou te devoro. Sanguínea. Cicatriz negra CRAVADA no branco do papel. Aurora espiral endoidecida. Papéis. Redemoinho.   

 

Garrafas vazias brotam do chão. 

 

Chove azul do céu. Lírios invadem meus pensamentos como colinas nevadas. Cães verdes ladram no fundo do bosque. Onde esta Ana? 

 

Carne e gozo.

 

Ao redor tudo é silêncio. 

 

 Trovões.   

 

 Ouço agora trovões. 

 

 

 É como um êxtase em sentido cego. Esgarçam-se como gaivotas afogadas.

 

                       Relógios disparam pela rua.  

 

RUARUARUA RUAUAUAUAUAUAU RUAUAUR.............   

 

 As palavras saem trôpegas como meus sentidos de porão. As horas esmaecem na pia. Guarda chuvas reluzentes brilham como páginas impressas. Sou eu. Isto sou eu. E mais aquilo. E o oposto disso. Nada é o espaço deste agora.  

 

Horas verdes assentam-se sobre o trapézio. Girafas circulares discorrem sobre Foucault olhares triangulares se desdizem como beija flores cinzentos uma música abandonada ressoa magneticamente em dias lúcidos e abissais.    

                                                                                                                                               Para que escreve isto?  

                                                                                                                                             Para que escreve isto?

 

Beber o branco do papel nas tatuagens impressas. Voltei. O palco ilumina-se. Era ontem. Estou aqui sentado (desde quando?). O tempo se amontoa pela estante e escorre glacial como um beijo. Amo Ana. Ela me entende. Não precisamos de palavras. As palavras criam confusões.   

                                                                                                                                            A neutralidade do silêncio.

 

 A verdade do silêncio.  

                                                                                                                                          Vou vomitar. 

                                                                                                                                      Tudo é turvo.    

 

E nunca mais.  

 

 

 

 

ALGO SOBRE MIM E SOBRE “SANTIAGO”

                                                                                                                                          Primeiro uma música dolente, depois um movimento lento à 3 fotografias. Uma cadeira solitária na varanda. Em preto e branco a lente passeia com vagar pelo espaço: é um jardim. Este é o primeiro plano do filme. Há uma velha máquina de escrever sobre uma mesa. Uma viagem à Itália em 1925. Meu primeiro movimento de montagem. Fantasmas insepultos no quarto. Um casal valsando. Dois sacos plásticos voando no ar como em "Beleza Americana". Um trem que voa como as vacas de Chagall. Um homem de fraque tocando Beethoven ao piano. Aquele meu primeiro amor. O mar que não sei explicar. O mar não se explica, nem se compreende.Uma reza em latim. Take 2. Se as luzes voassem no inverno eu seria um príncipe. O jardim como uma obsessão doentia. Chovem agulhas. A câmera fecha em close. Ouve-se ao fundo o barbeiro de Sevilha. O casal continua valsando. Uma fascinação rubra. Um poente. Guardanapo embebido em álcool e cânfora. No meio do escuro o caos. Farfalhar de outono. Pernas de mulheres que passam. e passam. Folhas. Avança a câmera pela casa. O grande relógio calado.O lugar do colibri que urra. A valsa. Em preto e branco as cores são mais nítidas. (CRIANÇAS BRINCANDO NO JARDIM). A palavra escorre menos quando se escreve devagar. A casa. Telhados penteados de lado. Paredes quietas e silenciosas em calmo desespero. Grito mudo. Gostava de dançar ao som do silêncio que há em toda música. Quando se dança,se dança mais do que simplesmente o corpo que dança:dança-se a alma que dança. Artista de cinema mudo. Pequeno e tenro recorte de revista. A sedução da casa que dança no silêncio em preto e branco da valsa. Necessário filmar a dança das mãos em dois longos planos. Descrever o sutil e suave movimento das mãos no escuro. Tato. Balé de borboletas e fragrância de infinito. No delicado caos estrela bailarina. Fiz vários planos iguais a este. No terceiro plano uma folha cai no fundo de um quadro. Sem exagerar o suor do boxeador. O corredor move-se. A terra move-se. O plano vai calmamente acentuando o prodígio da face. Mãos florescem. Minha memória de mil anos. O quarto mergulhado no tempo. Vê-se o quarto ainda. Sonhei que pertencia à fantasia. Hoje pensei em flores. O quarto valsando. Um vaso em máscara. Nem o luar foi tão sério como esta fantasia. Horas esquecidas e calvas. O marfim do sudoeste da varanda. O piano. A grama. Sol íngreme e notório. A luz do poste que dança mulher em orquestra. Francesca no segundo círculo do inferno.

Eternamente. Papéis e páginas. Vento varrendo a vida. O movimento das páginas. O vento. Restos de milhares de histórias. Alguém abdicou do trono outro fundou um reino. Em algum lugar um crepúsculo em hermosura. Maria de Sabóia cuja beleza deslumbrou Lisboa. Estamos na canção do outono. Dias breves. Aumentando o cristal da lente. Não entender é tudo o que vale a pena. O matiz azulado entre a caminhada e a dança. Voltar à casa. Retomar o filme. Plantar as cinzas no orvalho. Silêncio. 

 

PS: Texto escrito como rasura do filme “Santiago” de João Moreira Salles. 

 

 

 

 

 

APENAS A MESMA LINHA ESCRITA DESDE A INVENÇÃO DA ESCRITA

Escrevo apenas a mesma linha escrita desde a invenção da escrita. Todos escrevem as mesmas linhas escritas desde a invenção da escrita. A escrita não existe no tempo. Porque o tempo não existe. A escrita existe apenas no ato mesmo da escrita. A escrita ao ser escrita cria a escrita. A escrita ao ser escrita apaga a escrita. A escrita é um criar-se. A escrita é um apagar-se. Escrever é criar apagar. Ao escrever eu crio e apago apenas a mesma linha escrita desde a invenção da escrita. As linhas da escrita eu escrevo e apago. Escrevo e apago e reescrevo apenas a mesma linha escrita desde a invenção da escrita. A linha escrita por Homero é a mesma linha escrita por Dante que é a mesma linha escrita por Baudelaire que é a mesma linha escrita por Cervantes que é a mesma linha escrita por Drummond que é a mesma linha escrita pelo Sérgio que é a mesma linha escrita por Mallarmé que é mesma linha escrita por Pierre Menard que é a mesma linha escrita por Shakespeare que é a mesma linha escrita por Maria Alice que é a mesma linha escrita pelo Willian que é a mesma linha escrita por Camus que é a mesma linha escrita pelo Mirisola que é a mesma linha escrita por Machado de Assis que é a mesma linha escrita pelo Ricardo que é a mesma linha escrita por Borges que é mesma linha escrita pelo Fernando Pessoa que é a mesma linha escrita por mim. Ao escrever cria-se e apaga-se a mesma linha escrita desde a invenção da escrita. Apenas a mesma linha escrita que ao ser escrita se reescreve e reescreve a escrita. Todos escrevem apenas a mesma linha escrita desde a invenção da escrita. A escrita que escrevo é apenas a mesma linha escrita desde a invenção da escrita. Apenas a mesma linha. É isso o que eu escrevo: apenas a mesma linha escrita desde a invenção da escrita.

 

 

RABISCANDO UM GUARDANAPO NO BAR DA ESQUINA SÓ POR NÃO ESTAR FAZENDO OUTRA COISA

Quando não estou bebendo estou lendo quando não estou lendo estou transando quando não estou transando estou escrevendo quando não estou escrevendo estou tomando banho quando não estou tomando banho estou conversando quando não estou conversando estou ouvindo música quando não estou ouvindo música estou pensando quando não estou pensando estou almoçando quando não estou almoçando estou na fila do banco quando não estou na fila do banco estou no supermercado quando não estou no supermercado estou com Maria Alice quando não estou com Maria Alice estou conversando com o Ricardo quando não estou conversando com o Ricardo estou indo pra Argentina quando não estou indo pra Argentina estou deixando bilhetes na porta do refrigerador quando não estou deixando bilhetes na porta do refrigerador estou falando sobre nada com o Sérgio quando não estou falando sobre nada com o Sérgio estou contando estrelas no céu de Setembro quando não estou contando estrelas no céu de Setembro estou jogando páginas rasgadas pela janela do apartamento quando não estou jogando páginas rasgadas pela janela do apartamento estou mandando e-mails sem sentido para o Willian quando não estou mandando e-mails sem sentido para o Willian estou rabiscando um guardanapo no bar da esquina só por não estar fazendo outra coisa.

 

 

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José Sérgio Custódio gosta de fabricar poemas e adagas afiadas ao som de um blues. Ouve o silêncio e calcula as assonâncias. Pensa no significado do espaço em branco e escreve lentamente para que as palavras escorram devagar. Cultiva estranho jardim de textualidades. Rasura textos alheios. Gosta de dançar ao som do silêncio que há em toda música e de imprimir tatuagens verbais na pele do papel. Cursa mestrado sobre Borges na Uel (Universidade Estadual de Londrina). Ainda não publicou nenhum livro, mas pretende fazê-lo qualquer dia. E-mail: jsercustodio@yahoo.com.br.

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