Um dia encontrarão
os fósseis rupestres
de uma saliva
já extinta
virão tradutores
e ólogos e istas
capitalizarão:
[beijos cravejados na rocha]
e os poetas dirão:
a fotossíntese da pedra!
as ortodoxias
intoxicando tudo
implorarão o milagre da obra
de uma língua santa:
- uma palavra sua e seremos salvos!
pigmento inteligível para espécies vorazes
corroendo caverna
sanguinidade de sal
mas que lábios
que línguas
que linguística guerrilha
deixa fendas na fala?
como corpo sem carne
a linguagem não cala
só o homem sucumbe à ausência de órgãos
falência múltipla
na boca nunca insossa do tempo
* * *
Pão e vinho feitos nome
Tão úmida a sede
em meu sotaque
bebo-te a voz!
tens timbre de Tejo
salivas o mar
* * *
desse teu nome
minha boca carece
verbo que carne!
atocaio-te a língua
com minha fome
DESABOTOADURAS
Poesia com dentes
mordendo-me a fala
Poesia com falo
com tato, com toque
Se não me roça
ao pé da letra
Se não me rasga
botões à pele
diante dela
,frígida,
- calo!
PENUMBRA DA PONTE
Não há tela que o prenda
ou pincel que o retoque
é um rio onde passa uma sede por cima
:sede que afoga, e ninguém atravessa
é muito aquém de uma ponte que caia
é para além
é para longe a perder-se de vista
:linha inimaginária
é o prenúncio daquela que não se represa
que mora sem muros,
mas tem trepadeiras
:por onde subir para a copa de um sonho
o que ninguém vê
é o exílio em seus olhos
não demarca o caminho de volta com pedras
:amnésia de mapas
vai ter com uma índia, reaprende a rezar
e resigna os búzios
às vezes reparte poesia entre monges
:mas não se ajoelha
um nômade a ama,
com ele copula
e compõem heresias no alto da noite
:arregalam-se estrelas
Nas duas orelhas adorna risadas
e sabe ouvi-las até soluçar
estende tapetes à beira de um charco
:convite ao que é bento, batismo de barco
dá nome ao rio
nomeia com seiva suas iniciais
e sabe lhe ser sob a lua estuário
:só por isso perene
cabeceira do mundo na margem de lá
DESEMBOCADURA
trago à tona
esse fundo de mar
no fundo das coisas
que é só onde alcanço
um refúgio de ilha
poça de terra
avesso de água
tão profunda é a ida,
que volto ferida
arranhada na pele
dessa vil dura concha
de tão delicada:
a das palavras
bebo-as então
para desafogá-las
do meu corpo náufrago
sei andar descalça
sem cortar os pés;
mas não sou a que anda
sou como a que nada
de boca aberta
por entre corais
de arrecifes cortantes
minha voz, que eu sei
só o sal cicatriza a língua das frases
e esse rio,
até que deságue,
ainda é raso de tão doce
PARA-DENTRO
Por vezes parar
para apurar olhares e
afinar pensamentos
Aprofundar interiores
Inconter silêncios
Apalpar um grito que
não terminou
amputado por alguma canção
que soou mais profunda
Amparar um devaneio
pendido logo ali
à frente do corpo freme
Chegar ao cerne
Lamber a carne
Ferida é flora aberta na pele
pedaço de pano preso em arame
São os rasgos que os riscos
sempre nos deixam
Tremer de frio
mas não de medo
Apontar acertos
aprimorar os erros
Aspirar o pó dos pontos finais
soprá-los pra dentro
fechar o baú
abrir bem os olhos
Sem pára-quedas, pára-raios,
paradeiros, para-sempres ...
E só então ir ter com o presente
de peito aberto
por saber do impulso que o habita
Pronta
Pular
EU POLÍGRAFO
das tulipas no alpendre . dos seus polens suicidas . de utopias retorcidas . divas viúvas . véus ao avesso . das mudas musas cotovias . das pudicas desavisadas . do pó-de-arroz que assopro pálido . para acordar a deusa póstuma . do prefácio nunca escrito . do difícil livro pródigo . da palavra prematura . que não vingou no sol da boca . do prelúdio em pleno ventre . da água escassa em pote raso . do par de terra jazendo paz . das pás de mãos em pé de guerra . dos pedintes por beleza . do desespero retirante . do pelejar de um anjo torto . de um trovador em profecia . das duras pedras que apanho . dos caminhos que apalpo . das pérolas que por ora empenho . do que me atiram porcos parcos . do meu corpo apedrejado . a pesar nas minhas pálpebras . do penhor da iniquidade . do meu hino em letra morta . perambulando em exposta carne . oxímora, paradoxa, . dos semidons que me aprofundam . do punhal em peito nu . do medo pávido em dorso prévio . de que palavras despedacem . do parecer, do perecível . do desapego de um pária . da voz sem povo, dependente . desapontando o horizonte . trespassando o meu poente . à minha frente sucumbindo . despencando a minha fronte . precária alma de ser gente .
NÃO SER DE SOBEJOS
Faço uma fissura no vento que passa . assopro um sussurro de interrogação . será que um dia as minhas palavras . serão pressentidas, mais que desfolhadas, . pois que desse assanho, suspiro ou sobejo . eu não me comovo, sou eu o outono! . e por tudo que morro, as linhas que escrevo . não são o meu ar: são a respiração .
PÉTALAS EM BRANCO
Olhos feridos de não se fecharem . joelhos rasgados, marcas de não correr . essas mãos ora frias . por tanto tocarem . estão chamuscadas de vulcão e silêncio . uma vida . e não basta . a dizer-se mulher . sangrando e sangrando numa língua imprecisa . talvez mesmo preciso . seja mais que uma carne . para os ossos doerem . a fratura dos lábios . já de face cansada . inclinada na haste . daquela açucena . que ao florir, era inverno .
UM DEUS PARA O NOME
O que quer que eu diga? . Não quero inventar um deus para o nome; . não o faz menos mortal. . Os nomes estão cansados de batismos. . Dou-lhes a minha amnésia pagã. . E os chamo pelas suas significâncias, . como faziam os índios com seus significados. . Já se nasce impermanecível, nessas asas de ficar. . Tantos pássaros privados no passeio público. . Tanta gente aprisionada ao que julga serem as chaves. . Outro dia abri-me a porta para um menino de rua, . ele me salvou da humanidade. . E não tinha nome de santo. |