O MAIOR AMOR DO MUNDO
Ontem saltei pela sétima vez
da ponte
A mesma ponte sem rio por baixo
sem trovoadas por cima
Imaginei um oceano
coroando a noite
como um mar de pétalas
que se junta
a um mar de pérolas
que resulta
num mar de pedras
rolando
por baixo da ponte
E o frio era tanto
que abraçar a mim mesmo não bastava
Agarrar o ar
revendo
um barco que aderna
por trás do horizonte
enquanto salto
pela sétima vez
SELVAGEM
Comecei a morrer
pela primeira vez
numa manhã de maio
do ano de 1953.
As irmãs eram tão pequenas
quanto eu
apesar de terem vindo antes.
Bem antes
eu vira a expansão
– ou era aquilo o vagido? –
do universo
e compreender isto
seria uma outra história,
um novo nascimento.
Compreender
que quanto mais vivo estava,
quanto mais minhas pernas cresciam,
mais eu me distanciava
de mim.
A segunda vez,
ou seja,
o começo da segunda vez,
não importa:
títeres já habitavam minhas pálpebras.
As luzes da rua tremiam.
Eu sonhava sombras no berço
e os móbiles
tão antiquados
quanto é possível imaginar,
os móbiles voejavam
e suspiravam mais e mais sombras.
Era este meu canto de ninar:
paredes cobertas de notas musicais.
Seria um bom lugar aquele
se eu pudesse distinguir
o que era afeto e o que era terror.
A CORAGEM
pro Rapha e pra Ná
eles pedem que eu me levante
e siga
até mesmo a garota mais bonita
da cidade
insiste
ela tem uns olhos verdes claros
profundos
quer dizer
o seu olhar é profundo
e fala como se uma avalanche
ocorresse sistematicamente dentro dela
e dentro de mim fica isto
as vozes dos amigos
que pedem
que dizem
não se preocupe
tudo ficará bem
o desespero é só um prenúncio
e prenúncio não é realidade
eles dizem
amanhã ou depois
você seguirá para Havana
escreverá seu livro
enviará cartas a todos nós
contando de seu amor por Marta
e sobre seus novos amigos
e de sua nova maneira de caminhar
abraçando a si mesmo
eles dizem
que eu sou um bom sujeito
um grande amigo
generoso e fiel
que as pessoas se emocionam
com as minhas palavras
e eu digo que as palavras
são de todos
elas estão sempre voando por aí
e que eu apenas as recolho
e invento uma nova ordem
MORRER EM HAVANA
os homens são os que mais se despedem
um deles trouxe a canção perfeita
antes de partir
as mulheres ficam desoladas
por um momento
depois dançam
enquanto estendem nos varais
as vestes dos que permanecem
os pequenos sorriem e levitam
um cão coça o couro e suspira
há um incêndio sobre o horizonte
Marta olha para o mar do Caribe
com a mesma ternura
que senti um dia
ela calça sandálias gastas
e sorri da lembrança
que se desprende de seus seios
O OUTRO NOME DE LALO ARIAS
meu nome é diapasão
encontro de notas
num vibrafone
e contracanto
paz na terra também é meu nome
carregador de crianças nos campos
de centeio
varredor de rua
limpador de entrelinhas
meu nome verdadeiro
é entrelinha
meu nome é Ana
foi numa outra vida
que fui minha mãe
meu nome é você quem diz
pode me chamar
assim mesmo
já tive uma outra vida
eu era a minha filha Luiza
também fui um dos meus pais
num certo instante
em Valparaíso, Chile, cerca de 1942
portanto
meu nome é Hugo
e também Murillo
estou voltando pra casa
meu verdadeiro nome é este
casa
lar
moradia
meu nome não se apaga
nem se inscreve
tive duas identidades
fui gêmeo
estou entre o fogo e a gasolina
eu fumo e tusso
ando por aí como se tivesse apenas
19 anos
estou com 58
mas tenho todas as idades que já vivi
eu estou por aí
às vezes sem nome
procurando quem cante comigo
pode ser uma música qualquer
mas que emocione
e estremeça a face
da Terra
eu estou na terra
enfiado até o pescoço
um dia desses invento uma canção
sem pedir licença
e todos vocês
vão entender o que digo.
A ÚLTIMA NOITE NO INFERNO
Eu recordo:
a tempestade era uma cutelada
na nuca
que me derrubava
e me levantava.
Havia uma palavra presa
nos meus dentes,
depois ela escorria garganta abaixo.
Eu corria?
Nosso nome
era família.
Meu amor descia,
eu caía
e depois levantava
como se fosse um vapor
nascendo do meio-fio.
E depois?
Bem que podíamos
ouvir uma oração.
Eu corria?
Agora eu sei,
tudo pode ser resolvido
com serenidade,
então
recita novamente os versos
que eu criei pra você.
Ainda tenho seus olhos
grudados nos meus. |