ZUNÁI - Revista de poesia & debates

[ retornar - outros textos - edições anteriores - home]

 

 

LARA AMARAL

 

 

 

 

Torrencial

 

Olhos goticulados pela chuva no vidro

 

a folha não aguenta o peso da água

[desprende-se

 

o telhado não suporta a queda do céu

[desaba

 

o mundo cai lá fora

e os olhos nem piscam

a atenção é toda deles

 

até os gritos histéricos

do quarto ao lado

são abafados

 

a noite troveja alto

 

os ouvidos morrem em paz.

 

 

 

 

Urro

 

A parede afundada

no mesmo ponto

onde miro para pensar

 

O tapete em que descanso os pés

- escorada na cama -

mais parece uma canoa

 

O livro nunca termina

o marcador de página viciado

na ideia do parágrafo

 

No computador, descansa a tela

emperrada,

a tecla ‘espaço’

(...)

 

Sinto o órgão central do peito trepidar

tateio para medir o estrago

tudo é liso, plano, nenhuma concavidade

 

Meus dedos voltam decepados

Minha mão, fechada num murro.

 

 

 

 

Dia amputado

 

Dia amputado:

por suas frestas passam

feixes de sombras

cada membro seu junta-se

num novo monstro

 

dia sem porvir

de não sonhar

acordado

pesadelo ao vivo encostado

ao pé da cama.

 

 

 

 

Úlcera

 

No estômago, ranhuras

não é fome

sede, talvez

que cala

a boca

entreaberta

esbranquiçada

 

lânguida

a língua umedece

lábios

 

tentativa insana

 

a palavra pronuncia-se

entrecortada

vocifera, imprópria

derrama-se              

 

no seio

intumescido

que infla sangue

e expulsa

 

não se cura mais

o que desceu do peito

úlcera

 

 

 

 

Afiada

 

Dezenas de gumes

des(a)fiando-me

 

na lâmina, brilho do metal

sem sangue

 

centenas de direções

 

cortando

 

meu mundo

 

é de pavio curto

e quer me implodir

 

 

 

 

A Morte

 

Aguarda-me num encontro

[com hora marcada?]

 

espero meio acordada

no transe epilético

entre o sono e o despertar

 

deixo a água na cabeceira

preparada

para que ela transmute

em rara

bênção de sangue

aos dias áridos

ou de chuva ácida

 

Mais parece ser exangue

a me acompanhar

suplico-a súbita

ela dedilha devagar

as notas de sua provável

marcha fúnebre.

 

 

 

 

Staccato

 

Estou em des-
concerto

a vida, tola,
oferece remendo

suplico toque

partitura

 

 

 

 

Calma.ria

 

Como ambicionam essa paz truncada

de nuvens que não saem do lugar

com folhas que não varrerão o asfalto?

 

[Há ventania demais cá dentro

de onde se olha a alvorada

raspar a vidraça e nem chiar]

 

Empalhados ali, na sala de estar

 

[onde as crianças não correm

não podem esbarrar 

nas velas de cristal

no abajur ancestral

nos porta-retratos

preto e brancos e 

monótonos]

 

tomam chá fervente

na sala temperatura ambiente

queimam a língua com suas caras

de paisagem 

enquanto olham lá fora

 

a frente fria

 

brevemente esboçam

 

por baixo de seus casacos

sem pele

 

um arrepio que não

lembram mais.

 

 

 

 

Verso intragável


Numa hora dessas
eu abriria a porta da rua
sentaria ao sereno
e fumaria um cigarro

no entanto, sofro

de outro vício

acendo um poema


mas ele não me traga
nem me larga

deixo-o queimar

 

 

 

Alfinete

 

O dia pendura-se num alfinete

tento abrir, arde

sopro, e ele balança

 

a dor, alucinante, anuncia

o dia despedindo-se

como gota final de orvalho

 

oscilando no provável suicídio

de saltar da flor

 

 

*

 

Larissa Amaral Teixeira usa o pseudônimo de Lara Amaral como assinatura poética. Nasceu em Brasília em 23 de novembro de 1986. Formada em Jornalismo, escreve poesia desde os 13 anos de idade, e arrisca alguns contos de vez em quando. Tem poemas publicados na coletânea “Maria Clara: universos femininos” (Editora: LivroPronto). Publica no espaço virtual: http://laramaral-teatrodavida.blogspot.com/.

 

Leia também um conto da autora.

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2012 ]