Torrencial
Olhos goticulados pela chuva no vidro
a folha não aguenta o peso da água
[desprende-se
o telhado não suporta a queda do céu
[desaba
o mundo cai lá fora
e os olhos nem piscam
a atenção é toda deles
até os gritos histéricos
do quarto ao lado
são abafados
a noite troveja alto
os ouvidos morrem em paz.
Urro
A parede afundada
no mesmo ponto
onde miro para pensar
O tapete em que descanso os pés
- escorada na cama -
mais parece uma canoa
O livro nunca termina
o marcador de página viciado
na ideia do parágrafo
No computador, descansa a tela
emperrada,
a tecla ‘espaço’
(...)
Sinto o órgão central do peito trepidar
tateio para medir o estrago
tudo é liso, plano, nenhuma concavidade
Meus dedos voltam decepados
Minha mão, fechada num murro.
Dia amputado
Dia amputado:
por suas frestas passam
feixes de sombras
cada membro seu junta-se
num novo monstro
dia sem porvir
de não sonhar
acordado
pesadelo ao vivo encostado
ao pé da cama.
Úlcera
No estômago, ranhuras
não é fome
sede, talvez
que cala
a boca
entreaberta
esbranquiçada
lânguida
a língua umedece
lábios
tentativa insana
a palavra pronuncia-se
entrecortada
vocifera, imprópria
derrama-se
no seio
intumescido
que infla sangue
e expulsa
não se cura mais
o que desceu do peito
úlcera
Afiada
Dezenas de gumes
des(a)fiando-me
na lâmina, brilho do metal
sem sangue
centenas de direções
cortando
meu mundo
é de pavio curto
e quer me implodir
A Morte
Aguarda-me num encontro
[com hora marcada?]
espero meio acordada
no transe epilético
entre o sono e o despertar
deixo a água na cabeceira
preparada
para que ela transmute
em rara
bênção de sangue
aos dias áridos
ou de chuva ácida
Mais parece ser exangue
a me acompanhar
suplico-a súbita
ela dedilha devagar
as notas de sua provável
marcha fúnebre.
Staccato
Estou em des-
concerto
a vida, tola,
oferece remendo
suplico toque
partitura
Calma.ria
Como ambicionam essa paz truncada
de nuvens que não saem do lugar
com folhas que não varrerão o asfalto?
[Há ventania demais cá dentro
de onde se olha a alvorada
raspar a vidraça e nem chiar]
Empalhados ali, na sala de estar
[onde as crianças não correm
não podem esbarrar
nas velas de cristal
no abajur ancestral
nos porta-retratos
preto e brancos e
monótonos]
tomam chá fervente
na sala temperatura ambiente
queimam a língua com suas caras
de paisagem
enquanto olham lá fora
a frente fria
brevemente esboçam
por baixo de seus casacos
sem pele
um arrepio que não
lembram mais.
Verso intragável
Numa hora dessas
eu abriria a porta da rua
sentaria ao sereno
e fumaria um cigarro
no entanto, sofro
de outro vício
acendo um poema
mas ele não me traga
nem me larga
deixo-o queimar
Alfinete
O dia pendura-se num alfinete
tento abrir, arde
sopro, e ele balança
a dor, alucinante, anuncia
o dia despedindo-se
como gota final de orvalho
oscilando no provável suicídio
de saltar da flor |