ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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LUÍS COSTA

 

 

 

 

ARQUEOLOGIA INVIOLÁVEL  by L. C

 

 

Dehors, il n’y a plus que le reflet des flammes.

Car le poète est un four à brûler le réel.

 

Pierre Reverdy

 

 

 

DUAS PALAVRAS SOBRE A POESIA:

 

 

1

 

   Tirar da escuridão das palavras, por isso da real realidade, toda a luz possível, assim como um Baudelaire ou um Lautréamont o fizeram, à procura da beleza nos labirintos da podridão humana, essa é, a meu ver, a grandeza de toda a grande poesia. Nem mais nem menos.

 

 

2

 

    Definir a poesia é o mesmo que definir o indefinível. É Claro que podemos dizer que ela é isto ou aquilo. Mas isso serão simplesmente meras aproximações, deduções ou suposições.

    No entanto direi que poesia é, sobretudo, a voz do mágico mistério que nos envolve, uma voz polifónica e livre de todas as lógicas e empreendimentos racionais, em contínua progressão. Nela o lado consciente e inconsciente do homem encontram-se de mãos dadas. Por isso será uma espécie de aliança com o todo, com a natureza e com o universal cósmico. Dentro dela o homem existe em toda a sua totalidade, completo, à altura das coisas que o rodeiam e por isso também dos animais. Nela não existe a hipocrisia da moral moralidade. Ela é por natureza imoral. Uma moral imoralidade porquanto como diz Ernesto Sampaio:

“ A moral é a acção da poesia. Quer dizer o poeta é exemplar. Ele não pode aceitar que à sua volta se coisifique o homem. “ (em a “ Única Real Tradição Viva” )

Isto é, o poeta, e por isso a poesia, não aceita a moral hipocrisia de uma sociedade assente na religião de artifícios usurários e capitalistas que reduzem o homem a um produto de compra e venda, a uma coisa, mutilando-lhe a força da sua liberdade criadora. E assim a poesia encontra-se, usando o título de um livro de Nietzsche, para além do bem e mal do moralismo burguês. Por isso ela será sempre uma revolução ao nível espiritual contra todos os géneros de ortodoxias ideológicas venham elas de onde vierem, asfixiadoras da liberdade criadora de que acabo de falar.

    Digo: a poesia é uma contínua transgressão. Liberdade por excelência. Violação e transgressão das gramáticas, da linguagem usurária do pequeno ou grande burguês do dia-a-dia. E, embora fale com as mesmas palavras desse burguês, ela diz sempre mais do que o que diz. A linguagem poética é, sobretudo, autónoma. Ela explica-se a si própria, sem necessitar de se explicar. Ela é e está aqui e agora. E isso basta-lhe.

    A poesia é um acto Físico-espiritual. O leitor de um poema sente, ou pressente, antes de tudo, dentro de si, a estranheza, a obscuridade, o mistério, a luz, a magia e o fascínio, a intensidade, etc. do ritmo e da força daquela linguagem. À primeira leitura de um poema a compreensão inteligível ainda não existe, ou antes, ela existe, mas de uma outra forma, uma forma paradoxal: o leitor compreende sem compreender e não compreende compreendendo (percepção imediata, ou compreensão absoluta): é o acesso a uma gnose transcendental. A poesia é por este modo uma linguagem visceral e directa: ela fala-nos antes de qualquer acto ou pensamento lógico e por isso deixa-nos compreender o todo antes das partes, é uma linguagem unitária que abole todas as fronteiras das definições lógicas que tendem a quebrar a unidade das coisas perdendo-se na infinidade de uma lógica do divisível. Ela segue a sua própria lógica, a lógica do uno primordial, da linguagem como revelação. Ela é revelação. 

    E falo aqui não só da poesia surrealista ou hermética etc. isto acontece igualmente, a uma primeira leitura, nas obras de um estilo mais realista ou clássico, onde há uma mensagem, direi, inteligível ou clara.

    Como também já mencionei atrás, ela fala com muitas vozes, é polifónica. Basta para isso, como exemplo, compararmos a poesia de um Herberto Helder com a de um Kaváfis. Por um lado: o poeta visceral, dionisíaco, lírico na sua totalidade, do outro: o poeta lacónico, muitas vezes filosófico, comedido e prosaico, quase anti-lírico. Dois modos de cantar tão diferentes, no entanto ambos são entendidos como poesia. Ambos se alimentam e alimentam a poesia. Podemos até dizer que cada poeta tem a sua visão de poesia, pois que é por o seu meio que ela ganha uma determinada forma, um “ estilo “ de dizer ou cantar.

    Contudo na sua essencialidade a poesia é una; talvez até tenha a forma de uma circunferência. A circunferência que segundo um filósofo da antiguidade seria a forma mais aproximada de deus. Porém tudo isto são deduções ou aproximações imperfeitas de uma realidade que podemos descrever, mas da qual nunca poderemos tirar conclusões últimas. Talvez possamos dizer que moramos dentro de uma circunferência, talvez, mas como poderemos dizer que moramos dentro de uma circunferência sem nunca termos saído dela? Sem a podermos observar de fora? Talvez não moremos nunca circunferência, mas antes, sim, num quadrado.

    Também com a poesia acontece precisamente a mesma coisa. O poeta sente-a, vive nela, adula-a, mas lá no fundo não sabe bem o que ela é. Mas de uma coisa ele tem a certeza: a poesia obriga-o a cantar, a dizer, a praticar o culto do canto. Para o poeta ela é uma necessidade

 

    Mas então afinal o que é a poesia?


Talvez seja um acto indefinido, a voz do grande vazio que é o homem, do silêncio de deus, do grande mistério, uma necessidade ontológica, talvez seja a forma mais elevada de o homem habitar o mundo. O grande e maravilhoso mistério onde existimos.

Talvez Hölderlin, de facto, tenha razão quando diz que é poeticamente que o homem habita o mundo. Ou talvez, depois de tudo o que dissemos, a pergunta de René Char, que também é uma resposta, seja a forma mais indicada de se dizer alguma coisa sobre a poesia:

 

“ La réalité sans l’énergie disloquente de la poésie, qu’est ce?

 

 

 

 

 

 

 

A FOICE DO VENTO

Com a foice do vento na mão percorres os dias.

Trazes no coração um mistério de água morna

Que se quer libertar da assimetria das trevas,

Da ferrugem lancinante onde as coisas morrem

Sem nunca terem visto a luz da terra.


Percorres os dias com a foice do vento na mão,

Como um furacão que faz ninhos entre canaviais

Para que no fundo dos ribeiros cresçam seixos,

Novos, redondos como estrelas, onde os olhos

Habitem o excesso da luz, a maravilhosa cegueira...


E o flash do gume liberta-se, incandescente, no

Fundo dos olhos, e a água sobe do nada...

Agora, clara como um fresco leite, corre pelas veias pulmonares,

Ainda inchadas de caos, até à garganta, até onde a

Palavra inventa a própria palavra - um nó secreto.

 

A MÁSCARA

A minha vida é um golpe de tocha
na tarde queimada,
nasci de um sopro de deus
do suor,
no barro violento,
na eterna secura do seu relâmpago

Trago em mim todos os pecados do mundo,
pois minha boca abriu-se para
receber o sangue de meu irmão
Trago na testa uma ferida aberta
como sinal

Sou rei,
sou escravo,
sou deserto,
sou casa

Habito os dias no quebrar das ondas
com o oceano da máscara

O MENSAGEIRO

Acordo ao meio da noite,

à volta do meu leito relincha um obscuro oceano,

minhas mãos são dois troços acesos

pelo ódio do desejo,

na superfície do olhar faz-se um céu esvoaçante

que se me ergue da pele, em cinza

 

Encontro-me aqui, nu, entre os vermes,

uma floresta invernal ou um altar em pedaços,

uma terra devastada ou uma igreja em ruínas,

sinto-me vazio como um cálix

que, obtuso, cai das mãos da morte,

e o sismo do mundo ecoa debaixo da cama,

um parto feroz na agulha do sismógrafo

 

Vozes esquecidas nas bacias dos séculos

surgem e desaparecem nas trevas rupestres

como cavalos a galope,

furiosos cavalos,

ou bisontes

ou tigres feridos pelo gancho do sol

ou um dardo que fura o peito

onde ocorrem todas as tempestades dos livros sagrados,

onde o amor ou a morte

ou um andrógino desejo explode nas veias...

 

Então,

o motim dos argonautas nas harpas do corpo amaina

e as aldeias lacustres multiplicam-se,

revelando-se na sua comunhão original

 

e por entre teias de aranha e escombros de sonhos

ergo-me, agora , sorridente,

um bálsamo nos músculos doridos de noite,

 

um silêncio onde compreendo o gorgolejar nos vasos comunicantes

de onde a minha voz emerge

completa

 

- uma tela de arte simples

 

 

ESCREVO

Em cada palavra que escrevo

o mundo transforma-se

 

incêndio

ou voo de pássaro

trilho fluvial

ou água

 

onde só entro uma vez

 

escrevo

para que do bronze do nada

se faça um mar

 

 

ARQUEOLOGIA INVIOLÁVEL

Pássaros de pedra, ou lagos de espelhos

a alma ou uma armadura

emparedando o corpo

dai-me um sinal ou um sopro

um gesto simples que seja,

um céu mediterrânico,

uma montanha ou um pinhal,

uma pedra

uma pedra brilhante

ou uma casa de pedra e cal

um cantil onde os dias se possam libertar

do cobalto dos leites negros

que infestam as fechaduras dos amantes

que vindos do deserto se enrolam às ideias como uma cobra negra

uma enorme e lasciva cobra negra

uma cobra trepando a figueira

 

Olhai, olhai

este corpo de colher

estes braços anelados de céu

celidográficos compêndios bizantinos

estas pernas

estas pernas pintadas de branco

como as sete mulheres da Eritreia

este buraco vermelho que tudo encandeia

o centro do coração

um redemoinho lá dentro

a luva grená

que revolve o interior do amor

ou um sol quebrado em pedaços

um sol no veio das árvores

um sol de crinas cartesianas

um sol de onde emergem cilindros húmidos de vazio

cilindros enterrando-se no corpo da seda

como uma chuva de braços

ou lagartas em metamorfose

cilindros ou sal

cilindros ou água

calendários fluviais

 

Depois

a morte ou a salvação

a morte

esta enorme boca sem dentes que me vara a testa

metal ainda selvagem nas têmperas do animal ferido

a incerteza de um nome

um nome que me nomeie

mas o que é um nome?

mas de onde vem este nome que me nomeia?

quem fala em mim quando escrevo?

quem me deixa participar

no turbilhão do grande silêncio?

que respirar é este que se ergue dentro de mim

senão um vento que passa

por entre as trompetas das ânforas?

 

Se nada sei ou pouco sei

é porque moro fora das coisas

fora do foro dos fusíveis

na cidade devastada

ao lado da palavra amortalhada na incandescência do metal

no lado de fora da natureza

como uma forja de pez que reveste a alma do desertor

ou um disco aguçado

ou um compasso dividindo a cabeça dos animais

demasiado baixo para me aperceber dos vermes

demasiado baixo para enterrar as mãos no império da terra

 

Se de facto nada sei ou pouco sei

é porque a pata do mar poderoso ainda não existe em mim

é porque a seiva permanece entroncada nas cubas estáticas

no seu marfim dialéctico

é porque me encontro preso no cubo da circunferência polar

uma estátua exilada

ou uma fronteira lunar,

uma roldana entre mim e mim,

uma terra não cartografada

 

Por isso

é preciso quebrar a couraça dos objectos escuros

é preciso dançar-se com o pâncreas do tigre na boca

ou o rabo da cobra cascavel dentro do peito

por isso

é preciso quebrar o mármore dos patamares,

despregar as portas,

a sua enferrujada caligrafia ,

e sentir-se a avidez do encanto da carne no palato celífluo,

um tremor de terra nas vísceras,

nos astros,

nas vísceras

e ir-se mais além,

sempre mais além

 

até às zonas húmidas e musgosas

das profundas veredas

onde as coisas,

numa película de transparência,

 

- simplesmente são

 

 

 

FLASHES

 

Quando a morte chega

um antigo oceano descansa

no rodapé dos livros.

*

Nuvens sobre a montanha

uma lagartixa bebe do sol

a luz sonora

*

Chilreios e mugidos

pinheirais que se erguem

fósseis de luz

*

Um mar dentro das mãos

um mar, búzios e rumores

um tempo outro

*

O tempo dorme na pedra

biblioteca onde o mundo

é uma só metáfora

 

REVELAÇÃO

Sei que a palavra é o homem

a terra onde espeto as mãos até ao fundo das entranhas

a terra aberta como um tumor no peito

rasgado pela luz do estilete

as mãos brancas de amor ou ódio que o conduzem

com a certeza dos velhos ourives

porque há certezas indesvendáveis

porque há coisas que se revelam nos sinais

para lá dos sinais

porque há um relâmpago no interior das coisas

a luz obscura na boca das arcadas

instrumentos de medição anteriores ao tempo

 

falo

sei que o mundo é a minha boca,

a saliva que me corre pelo queixo quebrado de tempestades

sei que o mundo é um mundo no gesto da bailarina

que se volteia sobre o seu próprio peso

uma harpa explodindo raios de cor,

a leveza da música ardendo na antecâmara dos mortos

o meu corpo enterrado num paul de estacas

ali onde a vida se sente até aos ossos

ali fotografia queimada ou filme sem cor

ali onde a fundura de céus ou mares jamais navegados

cresce na alma como raízes no fio da espada

 

Digo

esta é a revelação do mundo num só instante,

revelação irrevelada,

a argila que se dilata sob um grito vermelho

girândolas nas mãos de homens dançantes,

mulheres nuas mergulhando nas flâmulas da água

e sombras que correm pelas ruas,

até aos becos

onde outrora fervilhou o metal da história

a revolta na face crespa

o rosto andrógino de alguma criança

esperança de homem florescendo na ponta da língua

malmequer num poço vertiginoso

 

e descubro que há um deserto no interior das palavras

um deserto que as andorinhas transportam em suas asas

até ao além das fronteiras ,

um deserto de filamentos nocturnos

ou um oceano que é um deserto

uma língua peganhosa que corrompe a pureza dos dias

que vai de encontro às portas das casas

e entra pelas fechaduras

com um golpe de hieróglifos nunca antes olhados

 

E descubro a luz da podridão

raiando-me por entre as mãos feridas de enxofre

dias podres dentro de válvulas entupidas

pois percorri ruas de cidades arrasadas pela fúria humana,

pois percorri rios e mares,

desertos e florestas

cobertos de corpos ensanguentados

até ao fim das noites remotas

onde bebi do cálix do vazio todo o fel do mundo

onde desfolhei livros antigos

com mãos enrugadas pelo ferro da incerteza

com mãos estigmatizadas pela falta de Deus,

 

filho pródigo , ou flecha de Páris

magia ou maldição

 

na maquinaria do mundo

 

 

CÍRCULO  FÓSSIL

Imobilidade sobre a pele da água,

pássaros no fundo do lago

como se o céu jorrasse dos limos,

chilreios que se propagam, qual

um rotor, pelo bosque, entre giestas

 

Olores, vibrações de luz no tremor

das folhas, um ribeiro estonteante,

o sulco de um tempo obscuro no ninho

dos fósseis, a morte perpetuada,

um encanto de cristal entre mãos

 

Aquele atalho que persegue o astrolábio

das estrelas, a perna escura que

tranquiliza as cabras selvagens,

momento em que o firmamento

se espelha, quase eterno, na terra

 

 

NOS APOSENTOS DE FAUSTO ( 2 versão )  

 

Para o Miguel de Carvalho

 

Levanto-me

ave caída entre séculos prostitutos

que toca a sequiosa luz

que toca o suco das sombras

o lugar onde correntes e chicotes golpeiam as costas dos dias,

o lugar da embriaguez

um grito de sonhos húmidos de alcatrão

um grito de densidade negra

um uivo de sol no centro do dia

 

 

Não sei se é a luz

ou a escuridão que me vestem

não sei se estou ou não estou

terei tocado o vazio da luz?

A vibração dos pés de Orfeu?

não,

não sei,

mas levanto-me

e ergo-me

de mim

contra deuses e semideuses

ergo-me

do fundo da minha matéria

da memória entre pequenas ilhas

a guerra silenciosa

ou um pus de poeira ou ferrugem

o cântico que me arrebata

o cântico que me ergue,

ergo-me

do canto

com esta boca visceral que me habita

esta boca

coisa sem nome,

obscura liberdade que me impele a cantar

 

 

E em meu redor

portais que se abrem dentro de espelhos quebrados

finas mulheres de lábios carmim

bebendo cerveja,

emparedadas na roda dos cafés do nada,

as altas horas da noite,

um vento artificial,

mas benigno,

que vagueia pelas ruas

um vento que envolve o mundo com uma doce notícia

das areias do Saara,

uma notícia surreal no saco do Facteur Cheval,

que distribuía cartas de amor, sonhos e loucura

de porta em porta em porta

com uma pedra luminosa nas mãos

 

 

Ah meu amigo Cheval !

( Lembro-me que dormias com a mulher do meu vizinho

e me pedias que não dissesse nada a ninguém ),

este é o lugar dos meus desejos

uma folha que se completa no som dos hieróglifos

que deixas à minha porta


Eu sei,

eu sei

que em cada nova hora habita o esqueleto da morte

uma lambidela no reverso do selo obscuro

o prazer de espetá-lo no sobrescrito dos dias

até que o sangue jorre,

até que o sangue jorre

quando as senhoras das estações de correios

- tão simpáticas! - dizem:
"olha! lá vem aquele que lambe os selos"*

e sinto o ácido metálico que abre fissuras nas recordações

bisontes que se erguem dentro da minha cabeça

um mugido de ácido sulfúrico nos rins

quais mãos ou cabelos que me ardem na garganta,

ou calos que me crescem na alma

e se dispersam,

magnificas verrugas,

pelas máscaras do eu


Ó mascaras que me quebrais o rosto cansado!

como se o fim do mundo não fosse a coisa mais natural da vida,

como se o objectivo da vida só fosse a morte

Ó bela esperança ou herança!

lotaria ou jogo de xadrez

engendrado nas cavernas dos úteros pensantes...


E com o rotor do delírio na boca

não sei se estou no mundo,

ou se é o mundo que está em mim,

não sei se caminho pela cidade

ou se é a cidade que caminha em mim

mas movimento-me

no disco da coisa sem nome

no veio das transparências

no canto do olho tatuado de sonhos

movimento-me

sem fingimentos estéticos,

sem afamadas teorias

sem novelísticos preceitos

na luz transparente da água,

na luz,

entre ondas oscilantes

no esquecimento do abandono

movimento-me...

................................................


Por isso

sou um mar selvagem que rebenta as amuradas matinais

um mar que suja as paredes brancas com o ódio de Deus,

um mar no peito das mulheres

que esperam por seus maridos até altas horas da noite

mulheres com sexos húmidos de desespero

mulheres de um velho mar dentro de um navio roto de bebedeiras,

sem remadores

nem compassos,

sem nónios

nem astrolábios,

um mar de vingança ou amor

um mar de destruição ou luz,

mar de uma raça apodrecida

mar inventado sob o esqueleto de um Deus morto,

olhos da lâmpada que impassível nos espreita,

olhos

universo frio de silêncios,

borbulhante glaciar...


Ó raça que esperas o regresso da pomba

que talvez nunca regresse

um regresso sem regresso,

leite de trevas que corre pelos canais

do desvario

leviandade no buraco negro da ilharga de Cleópatra

o vermelho do sono numa folha vibrante

ou a tortura da mudez escarlate no canto pessoano ,

do qual descreio


E descreio das belas palavras dos metálicos poetas,

senhores emparedados em milagrosos Büros,

senhores de babélicos arranha-céus

Senhores de gravatas bem engomadas

Senhores,

como se fossem donos do mundo

como se fossem donos do mundo


Sim, descreio!


não creio!


Não creio

na passividade do verbo bem lapidado

nos dentes bem lavados ,

muito brancos,

tão brancos que ofuscam o próprio sol,

creio antes nos cornos revirados da violência de Amun

no riso sarcástico de Mefistófeles

nos carneiros que quebram as pedras dos templos,

na sua insolência

crua como um sexo aberto sob a luz que cai a pique

ou um rio que se abre, monstruoso, em todas as direcções,

um rio de mil braços

um delta talvez que se agite como uma estrela em vias de extinção

um delta que abarque tudo com os seus tentáculos de incerteza

um maravilhoso delta que tudo quebre,

um golpe mortífero nas entranhas de Fausto

 

à meia-noite


- para que do álcool da carne se faça esperança

 

* Transcrito de uma missiva electrónica que o Miguel me enviou

 

 

 

A BÚSSOLA E O MAR

 

Àquelas horas,

o mar escondia-se no quintal

entre as velhas ossadas do tempo.

Enrolado a uma velha manta,

deus dormia ao fundo da escada.

Era um pobre de longas barbas brancas,

a túnica rota, os pés feridos,

descalços.


Então

a agulha da bússola endoidecia-se-me

entre as mãos,

como se reagisse ao sangue das pegadas

dos animais selvagens

que àquela hora galopavam por mim adentro

como uma demanda teológica.


Mas afinal que caminho seria aquele?

Para onde me levaria?


Com o vazio dos búzios no palato

bebia mais um café

E encostado à sombra da minha sombra

ficava ali

até que a bússola encontrasse,

de novo, o mar.

 

 

ÊXODO

 

Abandonámos o silêncio das aves, aquele lugar onde os anjos tocam a astúcia do barro com as franjas de sua música. Abandonámos a claridade dos dias. A seiva dos frutos. Deixámos tudo para trás. Metemo-nos no carro e tomámos a auto-estrada que nos levou até aos arredores da cidade prometida, onde a massa humana é um cilindro vertiginoso, onde a voz dos altifalantes atordoa os cérebros com vapores de Tequila, onde o cheiro a suores se liberta da pele das pessoas e queima as narinas habituadas ao verde das ervas, ao dilúvio dos claros ribeiros, ao jasmim, ao pequeno perfume dos arbustos selvagens.

Mergulhámos na confusão dos cabos flamejantes, no turbilhão de vozes que entram como lâminas incandescentes pelos ouvidos, umas na nossa língua, outras em línguas estranhas, e à nossa volta: gritos e choros e crianças com grandes chupa – chupas na boca e buzinas: cuidado! Cuidado! E o dióxido de carbono que inunda os pulmões, o oxigénio que nos quer abandonar, mas que nos quer bem, e passos rápidos, mas vacilantes, por entre a confusão de mil outros passos quando os semáforos se incendeiam de verde e o tempo é um sistema de lava dentro das raízes dos pés.

E inspirámos o rodopio da grande Babel. O monstruoso turbo que se nos ergue do fundo das entranhas até à linha da pele. A grande Babel. Uma pedra no charco escuro. Um galope selvagem de cremalheira. Uma pedra, um tremor de terra, uma pedra, uma anémona murcha morrendo no peito atormentado, um tempo remoto, o animal quadrúpede que segue de costas ao alto, o holofote da ambição desmedida nos olhos, a iluminação dos becos escuros, o jogo do senhor e do escravo.

E já um barco bêbado, levados pela multidão, deixámos de ser corpos para fazermos parte da avalanche humana, do grande dilúvio, da monstruosa armadura que nos ritma agora os nervos e as harpas da alma, que nos faz vibrar como cordas de um violino quebrado contra recifes, que nos amputa o pensamento com grandes cartazes publicitários e écrans gigantescos, onde descobrimos que não somos senhores de nós mesmos, mas simples marionetas, carcaças ou veias infestados pela insolência racional, uma ilha doente ao deus dará no grande oceano do nada - sombras na parede solitária de alguma caverna.

 

 

JEAN ARTHUR RIMBAUD 2

 

A mim

que inventei histórias e lendas de fantasmas
no tempo em que fui vendedor de armas na Abissínia,
em que as minha pernas ainda tinham a dureza dos bons varais,
a mim

que fiz da poesia carne,

que fiz de cada palavra um relâmpago de sangue,

um festim onde corria o leite e o mel,

a mim

que fui abandonado pelos remadores,
que, sozinho no barco bêbado, singrei

por entre universos impassíveis,

que perdi a chave do antigo império

onde se guardam as jóias dos antepassados
a mim

que pincelei florestas de signos na tela do luar,

fósseis de voragem nos corpos das mulheres ,
que respirei ouro profundo nas asas das borboletas 

que inventei formas exemplares feitas do granito de velhas visões
a mim

desregrado de todos os sentidos,

tatuado pelo dedo hebraico,

cravado na crista do dilúvio de olhos pretos e crina amarelada,
no limite das fronteiras carnais,

entre arame farpado ou um paraíso de sonhos hieroglíficos,

entre cintos rutilantes ou uma velha castidade,
 a mim

 herege ou vidente,

que bebi de todos os venenos a sua quintessência,

que comi da hóstia de Cristo o desespero,

 a mim uma palavra ou uma luz,

 (Ó pleine lumière! Liberté de parole)

um cometa de sal nas entranhas do tempo

 

a mim,

assim  regresso nesta hora obscura,

as mãos feridas, mas abertas para o mundo,

as mãos feridas

 como uma bênção nos nervos da perdição

ou um rio que se  alonga no deleite das suas margens

 

 

 

JEAN ARTHUR RIMBAUD 3

 

Dizei-me:

 

que badaladas serão estas?

sinos de bronze na tarde plástica de Alberto Caeiro?

pesadas correntes nos aposentos de Nerval?

 

serei eu quem fala

ou será a voz de um dos meus filhos?

filhos de bárbaros desertos

onde os relógios escorrem como queijo derretido

filhos de céus vertiginosos e vingativos caindo por salmos de rodopios,

esmagando-se contra rochedos,

filhos como anjos bebendo da baba de Deus a bílis secreta,

a divina tentação,

o doce pecado na ponta da língua,

filhos  do ritmo do caos e da desordem

 

serei eu quem inspira o tumulto desta brancura?

o reverso deste olho vazio?

esta faísca que cose as bainhas da minha carne?

 serei eu?
ou será a garganta descarnada do meu avô no leito da morte

agarrado a fantásticas máquinas de costura cavalgantes,

agarrado a uma  luva de cíclicas  nervuras secretas

 

ó luminoso oceano da voz,

 maré que te espraias,  teologicamente,  pelo mundo

até à soleira da minha porta,

pleno vazio ou tábua rasa que se ergue à hora da morte nas corolas do aço ,

vem! entra!

entra todo, integro, completo, de uma só vez,

entra pelas fechaduras cervicais 

explode-as

entra em mim, toma-me todo

vem! 

com peixes dourados,  barulhares de cavernas, fabulosas jubas,

búzios

 gaivotas miraculosas

vem !

 com o círculo secreto do cavalo onde cresçam rosas pelo interior

da sua  forma,

     onde se  ornamenta o corpo

                            com os arcos do teu vigor cíclico

 

  E agora

que regresso pelos ossos do teu centro

a mim mesmo, à minha casa,

 revejo-me nesta tela de aves reais que me inventa e ignora,

revejo-me no mergulhar da magnifica rebentação,

nas raízes redondas,

no rolar dos peixes,

nas rodas em desatinos crepusculares

revejo-me,

mapa-múndi ou serigrafia secreta,

 pobre aleijado,

 sem uma perna, os olhos vidrados,

vitrais de catedral ou  braços fugindo pelos ares,
fissuras perpetuadas na santa folha do tempo,

            e provo o tosco nó das uvas, 

a fervura do  mel

 

 para que um dia se faça um clarão na crusta do nada,

 

              - um buraco de luz no grito do grande silêncio.

 

 

 

JEAN ARTHUR RIMBAUD 4

 

 

 

    Lembro-me do tempo em que fui traficante de armas na Abissínia, em que as minha pernas ainda tinham a dureza dos bons varais, em que ainda perfuravam os dias com a ganância da pura seiva, lembro-me das histórias e lendas de fantasmas que inventei, que apontava no reverso das facturas, de como da poesia fiz carne, de como de cada palavra fiz um relâmpago de sangue, um maravilhoso festim onde corria o vinho e o leite e o puro mel

ó pleine lumière!  alchimie du verbe.  liberté de parole.

 

    Lembro-me de certa tarde, quando descíamos o rio, e me vi de súbito abandonado pelos sirgadores, e sozinho, ao deus dará, no barco bêbado, singrei por universos impassíveis, por espaços siderais, onde perdi a chave do antigo império, onde me libertei das cinzas dos meus antepassados, onde cinzelei florestas de signos fantasmagóricos na terra do luar, fósseis de vertigem nos corpos dos peles-vermelhas, onde respirei profundos metais nas asas das borboletas

    E desregrado de todos os sentidos, tatuado pela voragem do dedo hebraico, cravado na crista do dilúvio de olhos negros, no vento da crina amarelada, no limite das fronteiras sem faróis, descobri-me nu, todo nu, herege ou vidente ou pecador; e bebi de todos os venenos a sua quintessência, e comi da hóstia de Cristo o delírio do fogo, este pão de arame farpado ou parafusos egípcios, esta carne de sonhos hieroglíficos, este chicote rutilante nos olhos, esta velha castidade com cornos nos dedos.

 

    Depois, tomei da palavra a luz cervical, do sangue dos astros a loucura, e avistei cometas de sal nas entranhas do tempo, e vi céus explodirem raios, trombas, ressacas e correntes nas infinitas noites, noites queimando-me a carne até à medida da alma, arrancando aves mortas dos orifícios do orvalho, enterrando-se no corpo dos animais até à medula dos ossos,

e pela alba fogosa regressei a mim, fraco, sem uma perna, assim regressei a mim, a esta obscura hora, ao núcleo redondo e secreto do ser, como uma bênção nos nervos da maldição

 

um vómito ou uma sombra iluminada no grito do grande silêncio ou um rio que se alonga num  deleite de telhas quebradas, onde o selo de deus enlividece as janelas.

 

 

O FIM DO MUNDO

 

Silêncio.

 

O relâmpago do

 rotor aparece .

As sombras bebem

da luz infernal

e tornam-se visíveis.

 

Um altifalante

que espalha silêncio.

Corre-se em todas as

direcções.

 

De súbito,

O cordão umbilical

solta-se da terra.

 

A boca da minha avó

encosta-se-me ao  ouvido

 

e grita:

 

Rapaz,

 é o fim do mundo!

 

 

*


L. ( Luís ) C. ( Costa ) nasceu em 1964 em Carregal do Sal, distrito de Viseu. É aí que passa a maior parte da sua juventude. Tem o seu primeiro contacto com a poesia por meio de Antero de Quental, poeta/ filósofo, pelo qual nutre um amor de irmão espiritual. A partir dai não mais parou de escrever.  Depois de passar três anos num internato católico, em Viseu, descontente com o sistema de ensino, resolve abandonar o liceu. No entanto nunca abandona o estudo, sempre auto didáctico. Aprende o Alemão, aprofunda os seus conhecimentos de francês etc.

L. C. tem vindo a editar, regularmente, artigos (ensaios) e poemas no site-revista: TRIPLOV da escritora Estela Guedes e publicou também já três ensaios na revista digital brasileira do poeta Floriano Martins: Agulha, bem como alguns poemas na revista digital da escritora Valéria Elk: Conexão Maringá, e tem igualmente editado alguns artigos num jornal regional. Até agora ainda não se encontra editado em livro por que assim o quis (já teve oportunidade de publicar), visto que considera ainda não estar preparado para uma tal “ aventura “. No entanto acredita que num futuro próximo isso possa vir a acontecer.

E-mail: L.costa@web.de

 

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[ ZUNÁI- 2003 - 2009 ]