ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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LUÍS COSTA

 

 

 

 

TOPOGRAFIA ABISSAL

 

Quando se ama o abismo é preciso ter asas
                                           Friedrich Nietzsche 

 

1

 

INTROITUS

 

Encosto a cabeça à geometria

da mão 

 

Escrevo

 

Lá fora  o tempo apodrece

dentro dos frutos

barcos de papel  ardem

nos charcos

 

Fanfarras de silêncio

 

O  relincho dos cereais

 

2

 

PULMONAR

 

Respiram-se os pulmões pelas antecâmaras

moro entre estes negros juncais

 

as flautas  vertebrais  rompem constelações

o sol cai, vertiginoso, para fora das entranhas

 

Um dia hei-de cantar nestes púcaros de barro

a solidão de monstruosos céus

cada metal que a seu tempo me feriu os pés

 

Um dia hei-de, junto ao tanque de Bashô,

cuidar das feridas com o mais puro azeite

 

3

 

AVERNAL

 

Na obscuridade do delírio

danças sobre a  corda bamba.

 

Do fundo do abismo o vazio espreita-te: 

 

Olhos de faróis em sangue,

armaduras de lábios infernais

 

4

 

OMNIUM SANCTORUM

 

por vezes, as sombras jorram-me dos ouvidos
inundam-me a face, escalpelada,

sem máscaras que a protejam da chaga interior

os vermes desfraldam a carne
são  uma  epifania  no céu das veias

 

5

 

DOS LOUCOS

 

Enterram as mãos no branco do encéfalo
o cuspo atinge-lhes a boca
com um  golpe de ferraduras 

No pátio aclamam o enxame do vazio 
E se cantam é porque os pulmões
são foles a rebentar

Mais tarde, quando o ocaso
se ergue nos guindastes,
as almas mineralizam-se  ao cimo  da loucura

 

6

 

MÁQUINA ABISSAL

 

Há relâmpagos de cremalheiras

sombras que bebem o vinho do sol infernal 

e se tornam visíveis

 

Há altifalantes  que espalham silêncio

buracos com fémures presos a velhas mós   

Tornozelos trespassados por longos parafusos

Há a solidão das tatuagens  glaciares
ferraduras de gritos avassaladores
afundadas nos lama
çais  do tempo

 

Há uma casa em fogo –  murmúrios

de águas   blasfemas ,  lá dentro

 

7

 

TOPOGRAFIA ABISSAL

 

Meus ossos estremecem
na cabeça gera-se uma tempestade
mapas desfeitos
um fresco de Leonardo Da Vinci
apodrecido entre dedos inacabados
varais de solidão
equilibristas à beira de visões abismais
pantominas
veios de carne distorcendo a eternidade

oh glória de poder tocar as coisas
com a faca dos nervos!
de as sentir por dentro
como um ácido veludo
ou uma lâmina enterrando-se no ventre
das mulheres possessas

oh glória do rude metal!

tempestades de areia que levam consigo
os redutos dos velhos guerreiros
a charrua e o lavrador
os véus da princesa de cristal
e torres que vão caindo
fantasmagóricas
nas mãos dos generais da imbecilidade
e com elas a natureza vai-nos mostrando:
as garras dos tigres
os olhos em fogo
o grande escarro voltaico
  no silêncio das janelas de Deus
o seu último grito
  no concâvo das mãos masturbadas dos cardeais
a aurora manchada de bandeiras negras
  e braços enlutados
disparando luvas de rainhas mortas
  por entre risos sardónicos
húmidos como a dor dos anjos

que dor é esta?
que fizemos?
como fomos capazes de sorver
a última gota da Fonte que nos povoava?

ah!
este veneno que arde nas entranhas
com a brutalidade de barbáricas
hordas de carniceiros
este sangue podre que invade as manhãs
dos remotos jardins
esta raiva que lança fogo às casas lacustres
sem outro fim que não seja:

- MATAR! DESTRUIR!

que é feito da hora do amor?
que é feito daquela tremenda força
que estalava no peito
como um bom ciclo mesntrual?

por todo o lado
almas e corpos violentados
a astúcia do cifrão
o bezerro de ouro
que encontrou de novo o seu lugar
e em vez das estrelas
um céu repleto de vazio
onde um barco naufraga
obscuro
destruindo-se dentro de si mesmo 
talvez um último sinal
talvez um grão de esperança
para os que vierem

mas
as sombras da noite já se arrastam
por entre as ruínas dos templos futuros
e o sangue corre
borbulhante   pelos açougues


É A NOITE DOS ASSASSINOS!

 

8

 

Desço aos abismos 

o pássaro branco arde-me entre os dedos

 

Nas vísceras fermenta o vinho dos mortos

animais delirantes   rodeiam-me

 

 

 

 

*

Luís Costa  nasceu em 1964 em Carregal do Sal, Portugal. Tem vindo a editar trabalhos em revistas e sites digitais como: revista Conexão Maringá, Zunái, Triplov, Germina e Agulha.

 

Leiam também outros poemas do autor e um ensaio.

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