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LUÍS MIGUEL NAVA



O POEMA

É um arbusto, armados
ainda nele os últimos relâmpagos,
o poema.

A pedra cai no ventre
a água - a fruta poderosa, as páginas
onde a brancura se estilhaça, o lenço
como um relâmpago.

Os cães brilham ao alto
- são eles o arbusto.
de imagens onde a força miúda
como um leão íris
a atravessa o poema encarcerado em sua própria imagem.

A pedra, digo, cai no ventre
da água como um punho

- agora está no fundo desta imagem.


OS NÓS DA ESCRITA

Escrever é, para mim, tentar desfazer nós, embora o que na realidade acabo sempre por fazer seja embrulhar ainda mais fios. A própria caligrafia é sufocada.
Há, todavia, um momento em que as palavras são cuspidas, saem em borbotões, e o sangue e a saliva impregnam o sentido. É impossível separá-los.
Por trás talvez não haja mesmo nada. São palavras que não estão ginasticadas, que secam e encarquilham como folhas por que a seiva já não passe.
Oprimem toda a página, através da qual deixa de ser possível respirar. Tampam-lhe os poros. A própria chuva que neles não se escoa.


O INFINITO

Gostava de passar pela experiência de um desses espelhos em frente dos quais um outro é colocado - sentir a minha imagem multiplicar-se por mim dentro até ao infinito - o interior de um espelho em face do qual outro foi posto. Sempre que dois espelhos amorosamente se interpelam, qualquer deles, incorporando o outro, o atravessa e, carregando-o consigo, se coloca, perfilado e atento, do outro lado.


XADREZ

Às vezes entretenho-me a sentir cada palavra minha transformar-se em tantas quantas as pessoas que me escutam. As palavras multiplicam-se, irradiam, ficam-lhes no espírito como esses pássaros que, entrando em nossas casas, se debatem horas infinitas contra os vidros. É então que, com frequência, me apetece abrir o peito, expor todas as vísceras, os órgãos sobre os quais a luz do coração incide, e que, se acaso o sol me sobre na consciência, sinto os dedos regressarem lentamente às mãos. Trazem então consigo uma vontade imensa de jogar, de abrir de novo as vísceras, mostrar por dentro o corpo, esse magnífico xadrez de que o trabalho dos meus órgãos equivale à sucessão dos lances.


ESTACAS

Os meus ossos estão espetados no deserto, não há um só no meu corpo que lhe escape.
Cravados todos eles na areia do deserto, uns a seguir aos outros, alinhados.
Seria absurdo falar-se de esqueleto.
A pele foi entretanto soterrada, há quem já tenha caminhado em cima dela. Quem diria? A pele, outrora hasteada, uma bandeira, quase uma coroa.
O vento apoderou-se-me das vértebras. O próprio sol que entre elas brilha é descarnado, um sol deserto, onde o deserto penetrou.
Talvez pudéssemos lavá-lo, este deserto, quem sabe, ou amarrá-lo, amordaçá-lo. A pele garante o espaço, o resto logo se veria.


PAISAGEM CITADINA

A pele por fulgurantes
instantes muitas vezes abre-se até onde
seria impossível que exercesse
com tão grande rigor o seu domínio.

Não temos então dela senão rápidas
visões, onde os reclames
do coração se cruzam, solitários
e agrestes, reflectidos

por trás nos ossos empedrados.
Em certas posições vêem-se as cordas
do nosso espírito esticadas num terraço.

A roupa dói-me porque, embora
nos cubra a pele, é dentro
do espírito que estão os tecidos amarrados.


OS NERVOS

Começaram-se-lhe os nervos, um dia, a reproduzir com uma violência inusitada, abrindo-lhe por fim a pele, por fora da qual, como a hera nas paredes, rapidamente se espalharam, sobrepondo-se aqui e acolá à própria roupa, com que deixou de poder dissimular o acontecido. Não havia, além disso, peça de vestuário que, depois de a ter vestido há algumas horas, o seu espírito já quase não houvesse totalmente devorado. O mesmo sucedia com os óculos. À nudez que o espírito lhe impunha, vinha-se juntar assim uma espécie de cegueira, entre as quais não tardou a haver quem encontrasse afinidades.

FINAL

Não foi sem dificuldades que este livro rompeu através dos interstícios do mundo até chegar às tuas mãos, leitor, para aí, como um deserto a abrir noutro deserto, criara uma irradiação simbólica, magnética, onde o branco do papel e o negro das palavras, esses cores que segundo Borges se odeiam, pudessem fundir-se e converter-se nessa outra a que, na enigmática expressão de Sá-Carneiro, a saudade se trava. Como um desses objectos cujo peso, assim que neles pegamos, instantaneamente divide entre as nossas mãos e a alma, é mesmo de crer que ele esteja já dentro de ti - e algo de mim com ele. Acolhe-, pois, com benevolência, que, chegada a altura, havemos de arder juntos.

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Luís Miguel Nava (1957-1995) - Poeta que soube dramatizar um discurso fragilmente equilibrado no limiar da autodestruição. Morreu ainda jovem, assassinado na Bélgica.

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