O POEMA
É um arbusto, armados
ainda nele os últimos relâmpagos,
o poema.
A pedra cai no ventre
a água - a fruta poderosa, as páginas
onde a brancura se estilhaça, o lenço
como um relâmpago.
Os cães brilham
ao alto
- são eles o arbusto.
de imagens onde a força miúda
como um leão íris
a atravessa o poema encarcerado em sua própria imagem.
A pedra, digo, cai no
ventre
da água como um punho
- agora está no
fundo desta imagem.
OS NÓS DA ESCRITA
Escrever é, para
mim, tentar desfazer nós, embora o que na realidade
acabo sempre por fazer seja embrulhar ainda mais fios. A própria
caligrafia é sufocada.
Há, todavia, um momento em que as palavras são
cuspidas, saem em borbotões, e o sangue e a saliva
impregnam o sentido. É impossível separá-los.
Por trás talvez não haja mesmo nada. São
palavras que não estão ginasticadas, que secam
e encarquilham como folhas por que a seiva já não
passe.
Oprimem toda a página, através da qual deixa
de ser possível respirar. Tampam-lhe os poros. A própria
chuva que neles não se escoa.
O INFINITO
Gostava de passar pela
experiência de um desses espelhos em frente dos quais
um outro é colocado - sentir a minha imagem multiplicar-se
por mim dentro até ao infinito - o interior de um espelho
em face do qual outro foi posto. Sempre que dois espelhos
amorosamente se interpelam, qualquer deles, incorporando o
outro, o atravessa e, carregando-o consigo, se coloca, perfilado
e atento, do outro lado.
XADREZ
Às vezes entretenho-me
a sentir cada palavra minha transformar-se em tantas quantas
as pessoas que me escutam. As palavras multiplicam-se, irradiam,
ficam-lhes no espírito como esses pássaros que,
entrando em nossas casas, se debatem horas infinitas contra
os vidros. É então que, com frequência,
me apetece abrir o peito, expor todas as vísceras,
os órgãos sobre os quais a luz do coração
incide, e que, se acaso o sol me sobre na consciência,
sinto os dedos regressarem lentamente às mãos.
Trazem então consigo uma vontade imensa de jogar, de
abrir de novo as vísceras, mostrar por dentro o corpo,
esse magnífico xadrez de que o trabalho dos meus órgãos
equivale à sucessão dos lances.
ESTACAS
Os meus ossos estão
espetados no deserto, não há um só no
meu corpo que lhe escape.
Cravados todos eles na areia do deserto, uns a seguir aos
outros, alinhados.
Seria absurdo falar-se de esqueleto.
A pele foi entretanto soterrada, há quem já
tenha caminhado em cima dela. Quem diria? A pele, outrora
hasteada, uma bandeira, quase uma coroa.
O vento apoderou-se-me das vértebras. O próprio
sol que entre elas brilha é descarnado, um sol deserto,
onde o deserto penetrou.
Talvez pudéssemos lavá-lo, este deserto, quem
sabe, ou amarrá-lo, amordaçá-lo. A pele
garante o espaço, o resto logo se veria.
PAISAGEM CITADINA
A pele por fulgurantes
instantes muitas vezes abre-se até onde
seria impossível que exercesse
com tão grande rigor o seu domínio.
Não temos então
dela senão rápidas
visões, onde os reclames
do coração se cruzam, solitários
e agrestes, reflectidos
por trás nos ossos
empedrados.
Em certas posições vêem-se as cordas
do nosso espírito esticadas num terraço.
A roupa dói-me
porque, embora
nos cubra a pele, é dentro
do espírito que estão os tecidos amarrados.
OS NERVOS
Começaram-se-lhe
os nervos, um dia, a reproduzir com uma violência inusitada,
abrindo-lhe por fim a pele, por fora da qual, como a hera
nas paredes, rapidamente se espalharam, sobrepondo-se aqui
e acolá à própria roupa, com que deixou
de poder dissimular o acontecido. Não havia, além
disso, peça de vestuário que, depois de a ter
vestido há algumas horas, o seu espírito já
quase não houvesse totalmente devorado. O mesmo sucedia
com os óculos. À nudez que o espírito
lhe impunha, vinha-se juntar assim uma espécie de cegueira,
entre as quais não tardou a haver quem encontrasse
afinidades.
FINAL
Não foi sem dificuldades
que este livro rompeu através dos interstícios
do mundo até chegar às tuas mãos, leitor,
para aí, como um deserto a abrir noutro deserto, criara
uma irradiação simbólica, magnética,
onde o branco do papel e o negro das palavras, esses cores
que segundo Borges se odeiam, pudessem fundir-se e converter-se
nessa outra a que, na enigmática expressão de
Sá-Carneiro, a saudade se trava. Como um desses objectos
cujo peso, assim que neles pegamos, instantaneamente divide
entre as nossas mãos e a alma, é mesmo de crer
que ele esteja já dentro de ti - e algo de mim com
ele. Acolhe-, pois, com benevolência, que, chegada a
altura, havemos de arder juntos.