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LUIZA JORGE NETO


RECANTO I

Proposição:

Contorno-vos. Socorre-se a terra de mim
para vos contornar.

Enquanto se gastam montanhas
e a beleza se define como um sapato na relva
e a bondade é um mar
em contra-luz

vosso contorno vence
o meu poder.

Poder que vos desfoca, dinamite.

Invocação:

Mestre luz equívoca entre a página e o poema

e tu   João     num terraço
prisioneiro sobre o evidente
dinamitado

Pai dador de sangue

Vaídio gato animal sustido
no ovário de minha mãe vestíbulo e morgue

Eléctrico motor louco, louco navegante, máquina arborizada
a lançar faíscas pelo mundo
e sangue e seios e cílios sustentando o corpo!

Já o sol, nos pólos, era sol, o sempre.
Já um arco voltaico, mestre, em 33 rotações sonhava
alto
dava uma luz
sonora uma estridência
um íman

Assim veio a musa seus dedos apurados para
o exame dos mortos
deusa mão coçando-se
debaixo da terra
a empurrar.

(Idade de reabsorção)

Dedicatória:

Sobretudo a Dulcíssimo o amor em bruto, vinte vezes
banido 20 vezes assente sobre o chão 20 vezes
eternas a bater com a memória
no fundo do mar

a Ilo um ovo fecundo o mundo
a Ila viajante do espaço ínfimo entre dois planetas
revolucionados

e a Anjo um ser privado
ao que lava ao que perfuma
que foi um rio de espuma refluxo espérmico
entre muitas almas

a Telefonia, que foi boca sintética

contorno-vos
atravesso em vida o vosso ácido.  

Serva milenária de senhores e servos
serviçal matéria com as flores mais ácidas
sombra meio brilhante era estar a olhar-vos
solenemente

e sair como todos em Sèvres-Babilónia
de um alçapão de morte e de alegria
de uma degradação
de um degredo de uma bondade movida por roldanas.

Narração:

Assim começa:

Por toda a cidade havia um terraço
onde me debrucei sobre um rio infindável sobre uma
chávena de café com cisnes sábios
sobre um rio que só tinha de humano o ir
secando.

No cinema, cão de caça
atrelado a deus
(Vejo-vos vejo-vos entrar pelas janelas para dentro da câmara
onde se investe deus)
homens atravessam o largo cosmos,
infatigáveis no trabalho
como quem dá brilho ao fecho
de uma porta aberta.

RECANTO 11

 

O verão deu-nos uma volta aos olhos.

Voltou-se ao mais princípio dos princípios
a Ilo um ovo perdido num campo de pérolas
chamou-se por uma mulher (Ila, irmã, ovário)
para recuperar o sexo

mas o que nos apareceu foi a clareira como víramos
num filme e na televisão     a luz feita
espaço de calor aquela incandescência aberta
no juízo

que nos falava de um ser inexistente
de um ex-ser duplo
povoador de momentos agudos
de afiadas linhas da mão,

brancas gotas de amante à despedida
heróica incandescência metida
em supositório
pela artéria aorta.

 

*

Luiza Neto Jorge (1939-1989) participou da publicação Poesia 61. Sua obra, juntamente com a de Herberto Helder, é considerada um marco na dicção poética portuguesa.

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