ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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MARCELO ARIEL

 

 

 

 

A SEGUNDA MORTE DE HERBERTO HELDER

 

Para Cláudio Willer, Valdineide Dias e para o autor de Photomaton & Vox.

 

 

“ A mão na pena vale a mão na enxada”

 

— Rimbaud

 

 

 

 

Canto 1

 

Sim

ao acordar,

Ele pode ligar o lugar

que será a irradiação do tempo

ao que começa e morre nos sonhos

pode assim se vestir

de luz e de mortos

furiosamente

silenciosos

furiosamente

ausentes

para o paradoxo

acidentalmente

imaginados

do lado de fora que é dentro

como exercícios objetivos

de uma poderosa presença entrando

pela porta

do orvalho  dentro da geleira

 ou acordando em uma cama—savana,

em transparências que fomos

quando respirávamos sendo

 parte das explosões

solares e das vegetais também

árvores nos nervos

armadas com a beatitude louca

de respirar tudo,

“acordaremos”

para a transformação

da manhã em  velocidade

do infinito

e para o ruído

onipresente

das imagens,

para esse cálculo visual do verbo

da manhã

que nos fazia mergulhar

na compulsividade

do ato criativo

de certos expressionistas

abstratos,

que projetavam na paisagem

impulsos cegos

de mãos

deixando para um segundo momento

a inequívoca compreensão estilística

do impensável, ao vento igual a uma emoção

ligaremos sempre isso

ao começo do não-lugar

ao começo do não-infinito

das imagens resvalando

no sonho

onde agora sabemos

realmente nascia

o tempo,

anteriormente sempre

ali onde o Sol

jamais se levanta,

se espreguiçando semieternamente

em sua cama escura,

o Sol e sua infância

sim, era a sua

recomeçando dentro de um pseudo-sono

inquieto de espuma absoluta

de um mar absoluto,

nós, também, os peixes menores

pescados pelo que nunca e

jamais poderemos ser

como um reflexo luminoso nadando

dentro dele,

na parte do Sol que nos sonha,

incandescentes por dentro

desse pensamento

que agora sabemos

foi o êxtase gratuito,

principalmente o da destruição

do antigo corpo

do amor

antiga casa temporal

onde nenhum eu entrava vivo,

até a destruição do templo-teatro dos raios solares

nos campos

do cérebro

mergulhando

no fundo do rio das veias,

construindo o mar  vermelho

de um lado do corpo para o outro

 o que mergulha nos séculos dos séculos,

o lado sem nome,

acordando para contornar

a tristeza cada vez  mais abstrata

da verdadeira ausência de tudo,

do vermelho que louva a força

da sombra apenas humana,

que louva o fato incompleto

da evaporação da consciência,

onde também sonhamos com a nossa mãe

nascendo em nosso lugar,

chamando de volta

os dois lados do corpo

que havia nos emprestado,

chamando as nuvens azuis

para dentro do vermelho

que canta a força da estrela do não-tempo

acordando para a explosão do ex-tempo,

veremos o nascimento

da nossa mãe através da nossa morte,

para que a nuvem que fomos

possa arder,

veremos o amador transformado em criança de água

e em tempo do anti-tempo,

recomeçando onde a mulher recomeça,

veremos a luz nascendo com ela

como uma ave

do Paraíso indomável,

veremos através 

da nossa morte estes finos galhos

que foram veias

se convertendo em vento

e novamente em veias

no olhar louco da nossa mãe

com oito meses

e seu coraçãozinho sorrindo na superfície

do Sol,

sorrindo para o silêncio maravilhoso

que faremos

quando nosso olhar

se apagar na superfície dos fogos

ouviremos a trombeta que toca no sangue

ressuscitando  a misteriosa conquista do antieterno,

nosso olho esquerdo

finalmente sorrindo para o direito.

As ilhas siamesas:

Vida e Morte,

Anuladas para um Sempre mais selvagem,

e nosso olhar livre

do corpo, secando e queimando

enquanto com as ilhas afundamos,

como um canto dentro do silêncio,

como a canção do êxtase da carne

no silêncio das ossadas,

principalmente a sua

e a de Shakespeare,

principalmente a sua

e a de Marcelo Ariel,

mesmo quando o corpo

é queimado como uma floresta

o pó de tudo

 o que fomos

é ainda aquele silêncio concentrado

dos êxtases das ilhas siamesas

 que se separavam

na energia do silêncio e palavra, que jamais foram como ouro e prata

mas como luz e fogo

( O silêncio agora ilumina mais do que podemos entender

ou suportar, a palavra queima os silêncios que deveríamos ter

recuperado, queima esse oceano)

nossas mães nascendo em campos de silêncios

onde é longo o sonho

onde nos sentamos como um nevoeiro,

ao sabermos do nítido momento da nossa morte,

a criança-relâmpago

tenta em vão

 despertar o fogo na água.

 

 

 

Comentário ao primeiro canto :

 

“ Porque Herberto Helder em sua POESIA TODA investiga a existência de uma voz que é audível internamente sendo 'Fora do som' uma água como o sem tempo, podemos ligar essa porta aberta com a mão morta das parcas e iniciar a irradiação invertida da razão nas enormes ressonâncias escondidas nos fatos e em outros pontos ocos que se vestem de pergunta e nomes”

 

Em http://teatrofantasma.blogspot.com/2007/05/explicao-da-alegria.html

 

 

Ora a existência desta voz como um Nume e não um nome, como um lugar anterior e ao mesmo tempo uma desterritorialização do lugar interior, com a mãe no lugar do Alter-Mundo e não o oposto, é o centro deste primeiro canto. Este não é um poema hermético como o dinheiro ou a uma equação da astrofísica, mas estas duas forças simbólicas, uma limitadora do poema e outra, a mãe do futuro léxico dos poetas da atualidade, podem ser estágios necessários, entre a compreensão absoluta do nascimento e da destruição da poesia e seu renascimento, através da mente das antiqüíssimas máquinas.

 

 

Canto 2:

 

Se você não está em casa

o Amor existe

nas vozes

que lentamente se tornam asas

de um pássaro

com as asas dentro da cabeça

enroladas como o silêncio dentro da pedra

do crânio,

este que bem depois imita  o vazio de uma concha,

se você está quieto,

um cobertor vermelho

cobre seus olhos fechados,

imitando o fogo

que aparecia sempre

que respirávamos

incendiando devagar

a árvore perto do coração,

O nome desse fogo

acordando as visões

que se soltavam

do interior dos sonhos

para fora do nosso poço

( assim elas também fogem para o lado visível e depois caem invisivelmente)

durante esse ato

as pupilas imitando cometas loucos

indo de um lado para o outro do céu

procurando uma aurora boreal dentro da aurora corporal.

 

Se você não está em casa

sentiremos o instante

como

uma tabela periódica da eternidade,

uma árvore-pensante,

chamando o silêncio das vozes

com seu vôo imóvel,

depois, luzes feitas com outro tipo

de matéria dos sonhos,

com paisagens

se levantando milímetros por década,

se espreguiçando,

abrindo os raios

e se afastando

até o centro multiplicado de uma nova

visibilidade,

a visão de deuses se transformando na visão de cidades

no fundo do mar,

a memória no tempo como uma formiga em uma folha,

o incêndio ao contrário

chamado nascer

se convertendo em uma estranha flor animal

com o mar dormindo dentro dela,

agora ausência e vida se misturando

como luz e água,

os mortos que eram águas que foram fogos

queimando outra vez o silêncio,

olhando espantados

a abertura

que liga os eventos congelados do mundo

ao encadeamento indestrutível

de um único fato

chamado:

Entusiasmo

que evoca a imprevisibilidade

de uma alegria inimaginável

tudo significando

a parte incontrolável

de um mar

dentro do Sol

onde o imenso barulho dos vivos

é devorado

pelo  poderoso silêncio

das ondas.

 

Fim do segundo Canto.

 

 

*

 

Marcelo Ariel é poeta e performer. Autor de Tratado dos anjos afogados (Letra Selvagem, 2008), O céu no fundo do mar (Dulcinéia Catadora, 2009) entre outros.

*

 

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