A SEGUNDA MORTE DE HERBERTO HELDER
Para Cláudio Willer, Valdineide Dias e para o autor de Photomaton & Vox.
“ A mão na pena vale a mão na enxada”
— Rimbaud
Canto 1
Sim
ao acordar,
Ele pode ligar o lugar
que será a irradiação do tempo
ao que começa e morre nos sonhos
pode assim se vestir
de luz e de mortos
furiosamente
silenciosos
furiosamente
ausentes
para o paradoxo
acidentalmente
imaginados
do lado de fora que é dentro
como exercícios objetivos
de uma poderosa presença entrando
pela porta
do orvalho dentro da geleira
ou acordando em uma cama—savana,
em transparências que fomos
quando respirávamos sendo
parte das explosões
solares e das vegetais também
árvores nos nervos
armadas com a beatitude louca
de respirar tudo,
“acordaremos”
para a transformação
da manhã em velocidade
do infinito
e para o ruído
onipresente
das imagens,
para esse cálculo visual do verbo
da manhã
que nos fazia mergulhar
na compulsividade
do ato criativo
de certos expressionistas
abstratos,
que projetavam na paisagem
impulsos cegos
de mãos
deixando para um segundo momento
a inequívoca compreensão estilística
do impensável, ao vento igual a uma emoção
ligaremos sempre isso
ao começo do não-lugar
ao começo do não-infinito
das imagens resvalando
no sonho
onde agora sabemos
realmente nascia
o tempo,
anteriormente sempre
ali onde o Sol
jamais se levanta,
se espreguiçando semieternamente
em sua cama escura,
o Sol e sua infância
sim, era a sua
recomeçando dentro de um pseudo-sono
inquieto de espuma absoluta
de um mar absoluto,
nós, também, os peixes menores
pescados pelo que nunca e
jamais poderemos ser
como um reflexo luminoso nadando
dentro dele,
na parte do Sol que nos sonha,
incandescentes por dentro
desse pensamento
que agora sabemos
foi o êxtase gratuito,
principalmente o da destruição
do antigo corpo
do amor
antiga casa temporal
onde nenhum eu entrava vivo,
até a destruição do templo-teatro dos raios solares
nos campos
do cérebro
mergulhando
no fundo do rio das veias,
construindo o mar vermelho
de um lado do corpo para o outro
o que mergulha nos séculos dos séculos,
o lado sem nome,
acordando para contornar
a tristeza cada vez mais abstrata
da verdadeira ausência de tudo,
do vermelho que louva a força
da sombra apenas humana,
que louva o fato incompleto
da evaporação da consciência,
onde também sonhamos com a nossa mãe
nascendo em nosso lugar,
chamando de volta
os dois lados do corpo
que havia nos emprestado,
chamando as nuvens azuis
para dentro do vermelho
que canta a força da estrela do não-tempo
acordando para a explosão do ex-tempo,
veremos o nascimento
da nossa mãe através da nossa morte,
para que a nuvem que fomos
possa arder,
veremos o amador transformado em criança de água
e em tempo do anti-tempo,
recomeçando onde a mulher recomeça,
veremos a luz nascendo com ela
como uma ave
do Paraíso indomável,
veremos através
da nossa morte estes finos galhos
que foram veias
se convertendo em vento
e novamente em veias
no olhar louco da nossa mãe
com oito meses
e seu coraçãozinho sorrindo na superfície
do Sol,
sorrindo para o silêncio maravilhoso
que faremos
quando nosso olhar
se apagar na superfície dos fogos
ouviremos a trombeta que toca no sangue
ressuscitando a misteriosa conquista do antieterno,
nosso olho esquerdo
finalmente sorrindo para o direito.
As ilhas siamesas:
Vida e Morte,
Anuladas para um Sempre mais selvagem,
e nosso olhar livre
do corpo, secando e queimando
enquanto com as ilhas afundamos,
como um canto dentro do silêncio,
como a canção do êxtase da carne
no silêncio das ossadas,
principalmente a sua
e a de Shakespeare,
principalmente a sua
e a de Marcelo Ariel,
mesmo quando o corpo
é queimado como uma floresta
o pó de tudo
o que fomos
é ainda aquele silêncio concentrado
dos êxtases das ilhas siamesas
que se separavam
na energia do silêncio e palavra, que jamais foram como ouro e prata
mas como luz e fogo
( O silêncio agora ilumina mais do que podemos entender
ou suportar, a palavra queima os silêncios que deveríamos ter
recuperado, queima esse oceano)
nossas mães nascendo em campos de silêncios
onde é longo o sonho
onde nos sentamos como um nevoeiro,
ao sabermos do nítido momento da nossa morte,
a criança-relâmpago
tenta em vão
despertar o fogo na água.
Comentário ao primeiro canto :
“ Porque Herberto Helder em sua POESIA TODA investiga a existência de uma voz que é audível internamente sendo 'Fora do som' uma água como o sem tempo, podemos ligar essa porta aberta com a mão morta das parcas e iniciar a irradiação invertida da razão nas enormes ressonâncias escondidas nos fatos e em outros pontos ocos que se vestem de pergunta e nomes”
Em http://teatrofantasma.blogspot.com/2007/05/explicao-da-alegria.html
Ora a existência desta voz como um Nume e não um nome, como um lugar anterior e ao mesmo tempo uma desterritorialização do lugar interior, com a mãe no lugar do Alter-Mundo e não o oposto, é o centro deste primeiro canto. Este não é um poema hermético como o dinheiro ou a uma equação da astrofísica, mas estas duas forças simbólicas, uma limitadora do poema e outra, a mãe do futuro léxico dos poetas da atualidade, podem ser estágios necessários, entre a compreensão absoluta do nascimento e da destruição da poesia e seu renascimento, através da mente das antiqüíssimas máquinas.
Canto 2:
Se você não está em casa
o Amor existe
nas vozes
que lentamente se tornam asas
de um pássaro
com as asas dentro da cabeça
enroladas como o silêncio dentro da pedra
do crânio,
este que bem depois imita o vazio de uma concha,
se você está quieto,
um cobertor vermelho
cobre seus olhos fechados,
imitando o fogo
que aparecia sempre
que respirávamos
incendiando devagar
a árvore perto do coração,
O nome desse fogo
acordando as visões
que se soltavam
do interior dos sonhos
para fora do nosso poço
( assim elas também fogem para o lado visível e depois caem invisivelmente)
durante esse ato
as pupilas imitando cometas loucos
indo de um lado para o outro do céu
procurando uma aurora boreal dentro da aurora corporal.
Se você não está em casa
sentiremos o instante
como
uma tabela periódica da eternidade,
uma árvore-pensante,
chamando o silêncio das vozes
com seu vôo imóvel,
depois, luzes feitas com outro tipo
de matéria dos sonhos,
com paisagens
se levantando milímetros por década,
se espreguiçando,
abrindo os raios
e se afastando
até o centro multiplicado de uma nova
visibilidade,
a visão de deuses se transformando na visão de cidades
no fundo do mar,
a memória no tempo como uma formiga em uma folha,
o incêndio ao contrário
chamado nascer
se convertendo em uma estranha flor animal
com o mar dormindo dentro dela,
agora ausência e vida se misturando
como luz e água,
os mortos que eram águas que foram fogos
queimando outra vez o silêncio,
olhando espantados
a abertura
que liga os eventos congelados do mundo
ao encadeamento indestrutível
de um único fato
chamado:
Entusiasmo
que evoca a imprevisibilidade
de uma alegria inimaginável
tudo significando
a parte incontrolável
de um mar
dentro do Sol
onde o imenso barulho dos vivos
é devorado
pelo poderoso silêncio
das ondas.
Fim do segundo Canto. |