MARCO VASQUES
ANATOMIA DA PEDRA
mesa posta
mortos beijam
o café matutino
beijo todos os olhos
desses corpos soterrados
que azulejam o cimento
à procura de um céu
* * *
mesa posta
o sorriso ausente
pede um corpo
na manhã de areia
carrego as pernas
e os andares paralisados
que enterram as pegadas
no silêncio incolor
* * *
mesa posta
vivos devastados
bebem lágrimas
e as mãos sorvem
o café matutino
mesa posta
os mortos presentes
carregam lágrimas
silêncio
* * *
meu coração dorme
no ombro de um anjo esquecido
na garganta
escoa a voz
de todos os túmulos
paredes férreas dos dias
vozes tatuadas em prédios
e
por ternura
desenho
no sorriso do espantalho
uma nervura triste
* * *
no travesseiro
a imagem em osso
olho
f
i
x
o
agônico tempo
* * *
o osso
travesseiro
a
terra
perfume suturado
não me calo de ver
os tijolos tristes na pele
mármore pedra asfalto
o banzo na estrada
* * *
mortes
tatuadas
(na minha garganta)
vivas
em meu guarda-roupas
* * *
errância noturna
crianças
em meus sonhos
mordem
imagens
* * *
a minha fala crioula
escorrega da tua voz
nem porto nem príncipe
ruínas
que mastigo no jantar
para sanar a tua fome
* * *
tez branca
percussão muda
dorme em minha cama
* * *
desenho
em meu lençol
sonhos sombras
só
amanheço com a terra na saliva
noite
concreto
* * *
no voo do pássaro
o teu olho menina
uma asa
tesouro
neste
carrossel de escombro
* * *
abraços me alcançam
deste
cemitério de cinza
mastigo
o jardim de desespero
sem laquê
* * *
e estou
em tua geografia
acidentada
aterrado
no cemitério de cimento
de Bel Air*
Favela da região central de Porto Príncipe, Haiti.
* * *
na testa da espuma
a pedra carrega
a eternidade dos líquidos
turva é a essência do silêncio
no travesseiro das almas inquietas
* * *
girassol de dementes
pedra
tempo ácido
o som sorvido pela voz
pedra audível
no silêncio das nuvens
* * *
sonata azul-metal
desfilam
na afinação da carne
o limo na língua paralítica
o verso
servo da mudez
pedras e sentidos
no som sem sumo
* * *
no sumário surdo do sentido
sudário da caligrafia
infinda face que morre
na ancestral nudez da carne
em eclipses e rotações diárias
nem o vindouro homem
nem a vindoura mulher
substituirá o sorriso da pedra turva de sangue
vozes esculpidas em topázio
coro de mil bocas beijando Bach
* * *
túmulo mudo
vísceras de plástico
no
hematoma diário
lençóis de fogo
a apascentar o voo
das asas engessadas
* * *
na voz
chagas de gesso
o som
do piano
(sem as teclas)
a
colher dedos
* * *
a pedra
carrega a eternidade
no ventre da manhã
extravio de sóis
esse arsenal de agruras
pois
mil vozes
choram no meu coração
guardador de sombras
* * *
mesa posta
mortos beijam
o café matutino
beijo todos os olhos
desses corpos soterrados
que azulejam o cimento
à procura de um céu
* * *
mesa posta
o sorriso ausente
pede um corpo
na manhã de areia
carrego as pernas
e os andares paralisados
que enterram as pegadas
no silêncio incolor
* * *
mesa posta
vivos devastados
bebem lágrimas
e as mãos sorvem
o café matutino
mesa posta
os mortos presentes
carregam lágrimas
silêncio
Poema-livro escrito nos dias 12 e 13 de janeiro de 2010
Para Amílcar Neves, Vitória Neves, Néri Pedroso, Letícia Tambosi, Dennis Radünz, Péricles Prade e Pedro.
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Marco Vasques é poeta e contista. Publicou Elegias Urbanas (Bem-te-vi, RJ, 2005, poemas), Diálogos com a literatura brasileira - volumes I e II (Movimento/EdUFSC 2004/2007, entrevistas). Tem no prelo os livros Flauta sem Boca e Diálogos com a literatura brasileira - volume III. Os poemas aqui publicados pertencem ao livro Anatomia da pedra & tsunamis (inédito). É curador do site www.poetasnosingular.com.br e do blog www.poetasnosingular.blogspot.com.
Leia também uma antologia de poetas catarinenses organizada por Marco Vasques. |