BASF CHROME
de lamber o carretel
um cabeçote enguiça:
falha o mono/estéreo
no mais que se perde
ao se degravar a vida
e tudo engruvinhava
se lá no pleno cromo
da mastigação faminta
evisceravam-se bobinas
em festivais de tripas
aí eram os grunhidos
da menina possuída
ou um caubói baleado
enrolando a língua?
Quando te aproximares da terra, abre os olhos.
Américo Vespúcio, 1503
AVISO AOS NAVEGANTES
no perene provisório o atol é sem atalhos: Abrolhos
e os abra como se ordenasse um Sésamo, bem abertos
mais ainda se as quilhas que singram entranhas do mar
são longas lâminas de foices ceifando contra o fúcsia
onde – avisa Vespúcio – há recifes de floração súbita.
TALHERES DE PRATA
naquelas noites enluaradas
ele passava de calvo a hirsuto
e o seu jeito calmo, taciturno
mudava em espasmos e uivos
toda pele comichava muito
e durante um jantar de gala
ele explicava aos convivas
sua grave alergia à prataria
no canto do terraço escuro
sob uma lua já cheiíssima
foi visto abrindo um tubo
grande, como de vitamina
pensaram em crise cardíaca
porém no rótulo constava
pastilhas para licantropia.
A vida é líquida
Hilda Hilst
PITONISA
o que te atrai
a ti – mulher
a esse ofício
tão masculino
(a filosofia)
desde a barba
dos séculos
dos machos
de seu garbo
e fidalguia?
tanto sabe
a Hiroximas
esse homem
de penso & existo
que há muito
ele ajardina
uma roseira
só de espinhos
agora acreditas
que a verdade
por mãos finas
enfim despida
abrir-se-á toda
em suas pétalas
íntima e feminina?
ou crês ainda
que de Simone
de Hannah
ou de Cristina
ela desbotará
da crosta rude
de sua áspera
misoginia?
o feminino
sendo terra
pode a vida
que cultiva
pois conhece
da carícia à cria
o tal mistério
que não se ensina:
que o ventre
mesmo vazio
sabe da vida
o quanto é líquida
e que embora
a carne seja
no seu cerne
óssea e quebradiça
o saber
maior de todos
é coisa de pitonisa:
a diáfana fumaça
da ventura vitalícia.
O CLUNÂMBULO DE COPACABANA
as brigadas apolares foram ditas perfunctórias
e coçando-se à procura de mais esse insignificado
ia no bico de um gavião fluvial de cara macilenta
que se desenhava na camisa daquele japonês arfante
com pastinha de projetos minuciosos mudando de axila
pelas barras em alumínio do ônibus apinhado
em sfumato i chiaroscuro, nanquim et brocardos latinos
acomodavam-se como podiam ao eppur si muove
de uma meia criatura andrajosa (cabeça, tronco e rodas)
que deslizava sobre um skate ou carrinho de rolimã
em contra-plongée fluía pela ciclovia
entre moventes ancas, bundas, panturrilhas
e o filólogo colecionava mais aquela borboleta
no seu dicionário abonado por grandes clássicos
pensava: Hugo, O Corcunda de Notre Dame
e escrevia: o clunâmbulo de Copacabana.
SPAGHETTI WESTERN
por três segundos, naqueles fotogramas da sétima arte, só um coldre sobre o catre. um corte para o vilão (carranca de bebeu vinagre) e dois índios impávidos (mexicanos de forte-apache). na tomada alguns agaves e pelotas de feno pela rua do combate. quatro closes alternados completam a sequência do face a face e o tema do suspense encaminha-se para o ápice. as mãos rápidas e então os saques: cai o mocinho sem acreditar que seu Smith & Wesson engasgue. agora entendes a insistência na imagem? tiraram as balas do revólver do coldre sobre o catre. velhos truques da dramaticidade: bandido bom, melhor se for covarde.
TUBO DE RAIOS CATÓDICOS
sim, a gravidade é só esse detalhe
se um trapézio emparelha o Pégaso
e o olho é o novo umbigo do limbo
com os ouvidos por tubo digestivo
mera burla nesse cipoal de psicóticos
que se abole à custa de uns colchetes
e mormaços de manás propiciatórios
o teclado no covil dos metacarpos
e logo a luz desnumbra os nimbos:
raios escarificam bruxas e odaliscas
imoladas na fogueira das vaidades
ou atiçadas pelas próprias crinas
recolados à tela da TV que somos
as muitas Moiras e um Belerofonte
se revelam no elemento estrôncio.
A GUERRA NAS ESTEIRAS
o antro sonâmbulo
do macaco terráqueo:
tamanduás do espaço
de alimento barato
um cancro no orquidário
das formigas sem sufrágio:
a guerra nas esteiras
do fordismo enferrujado
o tal homem biônico
de braço descartável:
o lado grego da força
tanta e sem trabalho.
GRILAGEM
os jagunços dizendo que capavam
nada sabiam das bolas de Abelardo:
brandiam páginas sem cabeçalho
de arcabuz engatilhado no sovaco
em um varal de fios desencapados
andrajos espichados pelos caibros:
o couro do pandeiro trina o nervo
e uma mulher berra sobre o berço
no vau desse mato mal emancipado
várias vidas esgravatam sob o taco
da luzida bota do dito proprietário.
DRUMMOND, FARMACÊUTICO
na usinagem das anginas, o melhoral:
do neurônio à reles bactéria digestiva
bálsamo para as dores que excruciam
contra as tênias do tédio, o vermífugo
que clareia a fosca alameda dos cinzas
e ladrilha uma vereda com pedrinhas
o velho tônico de combate à anemia:
o ferro do sangue, o mesmo da mina
sabendo a bílis negra da melancolia
e para os achaques de asma ou mialgias
a melhor cânfora que arrepia as plumas
ali onde é mais viva a nossa carne crua.
Me habéis preguntado qué hila el crustáceo entre
sus patas de oro y os respondo: El mar lo sabe.
Pablo Neruda
OS NOMES DO MAR
o mar cria seus próprios cavalos e torna-se pedra quando muito gelado. ele não conhece flor nem fogo e mesmo assim pode queimaduras e adornos. tem enguias e mães d’água, corais e algas. o seu chão constela-se de esponjas e anêmonas. o mar é pródigo em estrelas e proventos. mas não tem galhos para os pássaros nem cabelos para os afogados. o mar é um cofre de naufrágios. no seu fundo caminham os escafandristas. entre moreias e meros seus sapatos levitam. o mar é duro e delicado como a carapaça de um crustáceo. em suas angras ele brinca de aquário. ele é aéreo nas nuvens e seu humor sujeita-se à lua. o mar arrasta ou empurra. e seus abismos devoram muitas âncoras. são os brincos que Iemanjá reclama. na praia a onda lambe a areia mas nunca há ânsia. o plâncton escoa na garganta e o píer é um palito que por ela avança. e se um farol a ilumina, ei-la sem amídalas. o mar é inteiro boca e saliva. e nunca cospe, apenas engole. quem pensa em ressaca o enxerga de fora. ou acredita em mentiras. o mar exige sorte além de perícia. o mar salga e salva. seu imenso é um cemitério de almas. o mar não se cala quando quer, por isso é bem maior que o céu. ele dá a volta ao mundo sem andar em círculos e move as nadadeiras do pensamento perdido. o mar pode ser lindo e sinistro. solares e umbrívagos são seus caminhos. e eles recolhem muita espuma pelas bordas. o mar é imêmore e guarda todas as horas. e só chega à costa para que alguém possa vê-lo. o homem que o vê é um peixe seco. de ar e sangue, e sem guelras. o homem é igual ao mar, concebe e faz guerras. deus separou a porção seca do mar e pôs o homem a viver nela. a terra separa as águas como a vontade faz com os homens. há nela duas árvores: a do conhecimento e a da vida. a lei é que certas frutas vermelhas são proibidas. para ir de um lado a outro o homem tem pés. para atravessar o mar, navios e Moisés. em terra o homem é o lobo do homem. já o lobo marinho é bem mais tranquilo. é mimoso feito um ouriço recém-nascido e quando cresce não promete espinhos. frente ao mar o homem tem arroubos divinos: caminhar sobre as águas, multiplicar os peixes. mas sua vida terrestre é de carne e leite. o homem brinca de deus quando teima. ele se consome de porquês e se fabrica problemas. o homem brinca de deus mas vive no tempo. e no mar ele nomeia seus medos: mar morto, mar negro, mar vermelho. o homem é água e enredo.
à memória de Mahmoud Darwich
SHUKRAN
no armazém das migalhas
ser o chefe dos almoxarifes:
mesmo nos grandes negócios
jamais pechinchar seu bakshish
só pelo prazer de dizer shukran
aos deuses que falam ídiche. |