ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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MARCUS FABIANO GONÇALVES

 

 

 

 

BASF CHROME

 

de lamber o carretel

um cabeçote enguiça:

falha o mono/estéreo

no mais que se perde

ao se degravar a vida

 

e tudo engruvinhava

se lá no pleno cromo

da mastigação faminta

evisceravam-se bobinas

em festivais de tripas

 

aí eram os grunhidos

da menina possuída

ou um caubói baleado

enrolando a língua?

 

 

 

 

Quando te aproximares da terra, abre os olhos.

Américo Vespúcio, 1503

 

 

AVISO AOS NAVEGANTES

 

no  perene provisório o atol é sem atalhos: Abrolhos

e os abra como se ordenasse um Sésamo, bem abertos

mais ainda se as quilhas que singram entranhas do mar

são longas lâminas de foices ceifando contra o fúcsia

onde – avisa Vespúcio – há recifes de floração súbita.

 

 

 

 

TALHERES DE PRATA

 

naquelas noites enluaradas

ele passava de calvo a hirsuto

e o seu jeito calmo, taciturno

mudava em espasmos e uivos

 

toda pele comichava muito

e durante um jantar de gala

ele explicava aos convivas

sua grave alergia à prataria

 

no canto do terraço escuro

sob uma lua já cheiíssima

foi visto abrindo um tubo

grande, como de vitamina

 

pensaram em crise cardíaca

porém no rótulo constava

pastilhas para licantropia.

 

 

 

 

A vida é líquida

Hilda Hilst

 

 

 

PITONISA

 

o que te atrai

a ti – mulher

a esse ofício

tão masculino

(a filosofia)

desde a barba

dos séculos

dos machos

de seu garbo

e fidalguia?

 

tanto sabe

a Hiroximas

esse homem

de penso & existo

que há muito

ele ajardina

uma roseira

só de espinhos

 

agora acreditas

que a verdade

por mãos finas

enfim despida

abrir-se-á toda

em suas pétalas

íntima e feminina?

 

ou crês ainda

que de Simone

de Hannah

ou de Cristina

ela desbotará

da crosta rude

de sua áspera

misoginia?

 

o feminino

sendo terra

pode a vida

que cultiva

pois conhece

da carícia à cria

o tal mistério

que não se ensina:

que o ventre

mesmo vazio

sabe da vida

o quanto é líquida

 

e que embora

a carne seja

no seu cerne

óssea e quebradiça

o saber

maior de todos

é coisa de pitonisa:

a diáfana fumaça

da ventura vitalícia.

 

 

 

 

O CLUNÂMBULO DE COPACABANA

 

as brigadas apolares foram ditas perfunctórias

e coçando-se à procura de mais esse insignificado

ia no bico de um gavião fluvial de cara macilenta

que se desenhava na camisa daquele japonês arfante

com pastinha de projetos minuciosos mudando de axila

pelas barras em alumínio do ônibus apinhado

 

em sfumato i chiaroscuro, nanquim et brocardos latinos

acomodavam-se como podiam ao eppur si muove

de uma meia criatura andrajosa (cabeça, tronco e rodas)

que deslizava sobre um skate ou carrinho de rolimã

 

em contra-plongée fluía pela ciclovia

entre moventes ancas, bundas, panturrilhas

e o filólogo colecionava mais aquela borboleta

no seu dicionário abonado por grandes clássicos

 

pensava: Hugo, O Corcunda de Notre Dame

e escrevia: o clunâmbulo de Copacabana.

 

 

 

 

SPAGHETTI WESTERN

 

por três segundos, naqueles fotogramas da sétima arte, só um coldre sobre o catre. um corte para o vilão (carranca de bebeu vinagre) e dois índios impávidos (mexicanos de forte-apache). na tomada alguns agaves e pelotas de feno pela rua do combate. quatro closes alternados completam a sequência do face a face e o tema do suspense encaminha-se para o ápice. as mãos rápidas e então os saques: cai o mocinho sem acreditar que seu Smith & Wesson engasgue. agora entendes a insistência na imagem? tiraram as balas do revólver do coldre sobre o catre. velhos truques da dramaticidade: bandido bom, melhor se for covarde.

 

 

 

 

TUBO DE RAIOS CATÓDICOS

 

sim, a gravidade é só esse detalhe 

se um trapézio emparelha o Pégaso

e o olho é o novo umbigo do limbo

com os ouvidos por tubo digestivo

 

mera burla nesse cipoal de psicóticos

que se abole à custa de uns colchetes

e mormaços de manás propiciatórios

 

o teclado no covil dos metacarpos

e logo a luz desnumbra os nimbos:

raios escarificam bruxas e odaliscas

imoladas na fogueira das vaidades

ou atiçadas pelas próprias crinas

 

recolados à tela da TV que somos

as muitas Moiras e um Belerofonte

se revelam no elemento estrôncio.

 

 

 

 

A GUERRA NAS ESTEIRAS

 

o antro sonâmbulo

do macaco terráqueo:

tamanduás do espaço

de alimento barato

 

um cancro no orquidário

das formigas sem sufrágio:

a guerra nas esteiras

do fordismo enferrujado

 

o tal homem biônico

de braço descartável:

o lado grego da força

tanta e sem trabalho.

 

 

 

 

GRILAGEM

 

os jagunços dizendo que capavam 

nada sabiam das bolas de Abelardo:

brandiam páginas sem cabeçalho

de arcabuz engatilhado no sovaco

 

em um varal de fios desencapados

andrajos espichados pelos caibros:

o couro do pandeiro trina o nervo

e uma mulher berra sobre o berço

 

no vau desse mato mal emancipado

várias vidas esgravatam sob o taco

da luzida bota do dito proprietário.

 

 

 

 

DRUMMOND, FARMACÊUTICO

 

na usinagem das anginas, o melhoral:

do neurônio à reles bactéria digestiva

bálsamo para as dores que excruciam

 

contra as tênias do tédio,  o vermífugo

que clareia a fosca alameda dos cinzas

e ladrilha uma vereda com pedrinhas

 

o velho tônico de combate à anemia:

o ferro do sangue, o mesmo da mina

sabendo a bílis negra da melancolia

 

e para os achaques de asma ou mialgias

a melhor cânfora que arrepia as plumas

ali onde é mais viva a nossa carne crua.

 

 

 

 

Me habéis preguntado qué hila el crustáceo entre
sus patas de oro y os respondo: El mar lo sabe.

 

Pablo Neruda

 

 

 

OS NOMES DO MAR

 

o mar cria seus próprios cavalos e torna-se pedra quando muito gelado. ele não conhece flor nem fogo e mesmo assim pode queimaduras e adornos. tem enguias e mães d’água, corais e algas. o seu chão constela-se de esponjas e anêmonas. o mar é pródigo em estrelas e proventos. mas não tem galhos para os pássaros nem cabelos para os afogados. o mar é um cofre de naufrágios. no seu fundo caminham os escafandristas. entre moreias e meros seus sapatos levitam. o mar é duro e delicado como a carapaça de um crustáceo. em suas angras ele brinca de aquário. ele é aéreo nas nuvens e seu humor sujeita-se à lua. o mar arrasta ou empurra. e seus abismos devoram muitas âncoras. são os brincos que Iemanjá reclama. na praia a onda lambe a areia mas nunca há ânsia. o plâncton escoa na garganta e o píer é um palito que por ela avança. e se um farol a ilumina, ei-la sem amídalas. o mar é inteiro boca e saliva. e nunca cospe, apenas engole. quem pensa em ressaca o enxerga de fora. ou acredita em mentiras. o mar exige sorte além de perícia. o mar salga e salva. seu imenso é um cemitério de almas. o mar não se cala quando quer, por isso é bem maior que o céu. ele dá a volta ao mundo sem andar em círculos e move as nadadeiras do pensamento perdido. o mar pode ser lindo e sinistro. solares e umbrívagos são seus caminhos. e eles recolhem muita espuma pelas bordas. o mar é imêmore e guarda todas as horas. e só chega à costa para que alguém possa vê-lo. o homem que o vê é um peixe seco. de ar e sangue, e sem guelras. o homem é igual ao mar, concebe e faz guerras. deus separou a porção seca do mar e pôs o homem a viver nela. a terra separa as águas como a vontade faz com os homens. há nela duas árvores: a do conhecimento e a da vida. a lei é que certas frutas vermelhas são proibidas. para ir de um lado a outro o homem tem pés. para atravessar o mar, navios e Moisés. em terra o homem é o lobo do homem. já o lobo marinho é bem mais tranquilo. é mimoso feito um ouriço recém-nascido e quando cresce não promete espinhos. frente ao mar o homem tem arroubos divinos: caminhar sobre as águas, multiplicar os peixes. mas sua vida terrestre é de carne e leite. o homem brinca de deus quando teima. ele se consome de porquês e se fabrica problemas. o homem brinca de deus mas vive no tempo. e no mar ele nomeia seus medos: mar morto, mar negro, mar vermelho. o homem é água e enredo.

 

 

 

 

à memória de Mahmoud Darwich

 

 

 

SHUKRAN

 

no armazém das migalhas

ser o chefe dos almoxarifes:

mesmo nos grandes negócios

jamais pechinchar seu bakshish

só pelo prazer de dizer shukran

aos deuses que falam ídiche.

 

 

 

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Marcus Fabiano Gonçalves nasceu no Rio Grande do Sul. Formado em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS, é mestre e Doutor em Teoria e Filosofia do Direito. Prepara doutoramento em antropologia na École  des Hautes Études en Sciences Sociales. Morou em Porto Alegre, Florianópolis, Paris e Natal. Atualmente Radicado no Rio de Janeiro, é professor da Universidade Federal Fluminense. Em 2005 publicou O Resmundo das Calavras (WS Editor), obra finalista do Prêmio Jabuti. Os poemas acima são do seu segundo livro ARAME FALADO (inédito).

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