ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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MARIA DAS VITÓRIAS DE LIMA ROCHA

 

 

 

 

1. CIGANO DESEJO

 

Meu desejo

anda de bonde,

patins e avião.

 

A pé, descalço,

de tênis

e camisão.

 

Meu desejo

anda tímido,

coitado.

 

Pega carona no vento,

no tempo,

anda até na contramão.

 

Meu desejo

só não anda

satisfeito.

 

 

 

2. SAIAS

 

Saias

arrebanham

ventos e tempestades,

murmúrios, marulhos,

nunca d’antes escutados.

 

Saias

trazem

o colorido revolto

dos mares incessantes

insensíveis

insensatos.

 

Areias, algas, sargaços,

argila, falésias

em constante dissolução.

 

Minhas saias

arrastam

atrás de si

amores, saudades e

tangem

para casa

memórias

com gosto

de sal,

de chuva,

com gosto de

nunca mais.

 

 

3. OPUS 42

 

São 42

agostos.

 

uns passados

em branco.

 

outros

a limpo.

 

outros

a seco.

 

os melhores:

bissextos.

 

 

 

4. QUE NEM JAMES DEAN

 

Veio,

deu um rolé

com seus olhos verdes

e foi-se

rápido

que nem James Dean.

 

 

5. PASTORES DO MAR

 

Os surfistas são pastores

as ondas

- ovelhinhas –

 

voltando à terra

deixam no mar

t r e s m a l h a d a s

as ovelhinhas.

 

*

 

6. Quando olho no espelho

lembro da amiga que dizia:

“quanto mais choro

mais passo batom.”

 

*

 

7. ME(N)TIRA

 

Tiro-te

de mim

homem.

 

Tira de mim

o abraço pouco

lasso

frouxo.

 

Retira-te

de mim.

 

 

Tiro

do peito

um nó

 

uma gravata

uma estaca

 

(Vampiro)

 

estanca o sangue

 

respiro

pelo buraco:

 

(um vácuo)

 

Retiro

a palavra rubra

do peito

(que sangra)

 

Retiro-me

 

Só.

 

 

 8. LÁPIDE

 

Aqui jaz uma mulher:

tudo fez pra ser feliz

se rimou amor com dor

não foi bem porque o quis.

 

 

 

9. MENINOS & RATINHOS

 

Mais sorte têm os ratinhos:

já nascem prontos,

prontinhos,

casacos de pele,

agasalhos quentinhos.

 

 

 

10. FÚCSIA

 

Da paleta dos jambeiros

sai o fúcsia que

pinta & borda

as calçadas dos setembros.

 

 

 

11. IPÊS

 

De roxo, rosa & amarelo,

Pintam os ipês

A paisagem.

 

 

12. GATTOPARDO

 

GATTOPARDO

GATTOPARDO

COM OS OLHOS

ACARICIO

SUA JUBA GRIS.

 

SEU PASSO ÁGIL

DESENHA

HAICAIS

NAS MANHÃS

DO CABO BRANCO

 

TÃO ORIENTE

QUANTO

O SOL NASCENTE

DE SEUS

ANCESTRAIS.

 

 

13. MATINÊS

 

Que bonito é...

 

antes do galã

o futebol

que re(tardava)

o deleite.

 

que bonito é...

 

deixar o beijo

em banho-maria

como se tivéssemos

todo o tempo

do mundo.

 

entre um

& outro

drible

o samba

fazendo contraponto.

 

que bonito é...

 

 

14. MULHER

 

anáguas,

anquinhas,

crinolina,

corpete,

cinturita

espartilho,

bico fino,

salto alto,

estilete,

(joanete)

 

desmaios,

agonias,

(ai, meus sais!)

 

anorexia,

bulimia,

aeróbica,

botox,

cera quente,

lifting,

peeling,

forno,

lipo,

máscara,

silicone.

 

ontem:

mulher objeto.

 

hoje:

escamoteável.

 

 

15. MARILYNESQUE

 

De tão alucinada por Marilyn

ingeriu um vidro de barbitúricos,

encharcou-se com Channel nº 5

e ateou fogo às vestes.

 

 

16. LUNÁRIOS

 

Preso

em sua

circularidade

o tempo

...e no entanto

ele se move...

urge...

foge...

 

na barriga

da memória

o tempo

engendra fábulas

irretorquíveis...

inenarráveis...

irretocáveis...

 

na sua marcha

inexorável

o tempo

enquadra

noites

de plenilúnio.

-  enquanto isso –

 

gatinhas lascivas

gemem

de prazer

diante do pires de leite

que a noite

derrama

sobre

os telhados.

 

 

 

 

17. MARÍTIMA

 

Louca –

romântica,

fez-se ao mar

em caravela

íntima que é

de náufragos

e tempestades.

 

Intrépida –

(achava-se)

para outros,

imprudente.

 

Confiante –

içou velas

sem ignorar que

nessa travessia

não se leva

salva-vidas

âncora ou

bússola.

 

Portos –

sempre há:

nem sempre à vista,

nem sempre seguros,

nem sempre

regresso.

 

 

 

 

18. NA REDE DOS POEMAS

 

Na rede

das madrugadas

cochilam

os poemas

um ruído qualquer

pode despertá-los

e vêm rondar

nossas insônias

 

 

 

 

 

19. O ELEMENTO PATERNO

 

Em seus últimos anos

meu pai tornou-se íntimo

de beija-flores, borboletas

e pardais.

 

Lúcido,

conversavam

sobre assuntos

que só

a eles pertenciam.

 

As flores também

mereciam sua atenção –

principalmente as violetas

com quem compartilhava

 

A modéstia

e a singeleza.

 

 

 

20, MÃES D’ÁGUA

 

 

De onde você acha

que deus tirou

tanta água e sal

para criar os mares, os oceanos?

 

Com certeza

foi dos olhos das mães

dos náufragos,

dos marinheiros à deriva

tragados pelas tempestades.

 

Dos soldados insepultos,

Abatidos

em longínquos campos de batalha.

 

 

Foi dos olhos das mães dos heróis

e das mães dos bandidos.

das mães das perdidas,

seduzidas, espancadas,

assassinadas.

 

 

Porque mães têm olhos copiosos –

mesmo quando é só

de saudade

que choram.

 

 

 

21. TRANSFIGURAÇÃO

 

Chegou-me envolto

em gabardine preta -

num flagrante esforço

em disfarçar membros atrofiados.

 

Sua poesia falava de um passado

romântico

recheado de mulheres exóticas

e amores arrebatados.

 

Difícil para quem não o conhecera jovem

conciliar os dois –

o homem que emergia naqueles versos

e o outro - coxo, alquebrado.

 

Venceu a poesia -

que transfigura a realidade

feia e insípida

em versos lapidados.

 

Quando o tempo  um homem definha -

tornando-o triste figura

a poesia embeleza seu presente

mesmo dizendo que é tudo passado.

 

Mesmo sendo mera referência

do que hoje é só passado

melhor esquecer o que vemos

e ficar com o que foi transfigurado.

 

 

*

 

Maria das Vitórias de Lima Rocha (Vitória Lima) nasceu na cidade do Recife, Pernambuco, em 1946. Graduou-se em Letras (Inglês e Português) pela UFPB. Mestre em Inglês (Universidade de Denver Colorado, EUA) e em Estudos Shakespeareanos (Shakespeare Institute, Universidade de  Birmingham, Inglaterra). Professora de Literaturas em Língua Inglesa – UFPB (de 1970 a 1992), atualmente leciona as mesmas disciplinas na UEPB. Publicações em livros: Anos Bissextos (Poesia), João Pessoa: Editora A União,1997 e Fúcsia (Poesia) João Pessoa: Editora Linha D´Agua, 2007. Participação em Antologias: Nordestes, Fundação Joaquim Nabuco/SESC São Paulo, 1999. Estação Recife, Coletânea Poética 3, Prefeitura do Recife, 2004. Autores Paraibanos – Poesia, João Pessoa: Editora Grafset, 2005. Imagem Passa Palavra – Poesia - Faculdade de Belas Artes, Universidade do Porto, 2004. Coletânea Antônio Maria de Crônicas,  vol. 1, Prefeitura do Recife, 2010.

*

 

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