O QUE HÁ POR TRÁS DAS MENSAGENS-PADRÃO
em caso de despressurização, máscaras jamais cairão automaticamente e você pensa: vou morrer, hoje é meu último dia de vida, e vem na sua cabeça o dia em que pela primeira vez seu pai soltou a sela da sua bicicleta na avenida beira-mar. você não olha para trás e pergunta: pai, voce ainda está me segurando? e ele diz, de longe: sim, continuo segurando você. e no outro dia, há a cerimônia para arrancar definitivamente as rodinhas com chave de fenda, um alicate e um tanto de temor. caso as máscaras venham a cair, puxe uma delas, pense em deus, pense que nunca mais ninguém vai abandonar você três quilômetros antes do seu carro, com o porta-malas cheio do seu coração, do seu estômago, da sua boa vontade, pense que nunca mais derramarão gasolina sobre o seu corpo, nunca mais tocarão fogo nos seus calcanhares com fósforos gigantes em brasa, coloque-a sobre o nariz e a boca ajustando o elástico em volta da cabeça e depois auxilie os outros, caso necessário. se houver uma criança ao seu lado, deseje todos os dias ser mãe, deseje que seu filho seja parecido com você, um cabelo enroladinho, uma pele alva e curiosidade inquieta. dizem que esta aeronave possui 06 saídas de emergência, mas somos tantos em busca da mesma porta estreita, da mesma chance de salvação celestial, 02 portas na parte dianteira, 02 saídas sobre as asas dos albatrozes que cruzam o relento do céu quando passamos em cima do rio são francisco, à direita da aeronave, e 02 portas na parte traseira. cartões com instruções detalhadas de segurança e de como não entregar o corpo ao vão sentimento dos que parecem amar você mas não amam, encontram-se na bolsa à sua frente. como medida preventiva, o cinto de segurança de demência de impedimento de falta de libertação espiritual deve estar afivelado durante o vôo. lembramos que o assento de sua poltrona é flutuante e estaremos todos imersos na mesma água até que alguém nadará em sua direção gritando seu nome e tirará sua roupa pesada debaixo dágua e amará sofregamente cada pedaço do seu corpo mole. você diz, ainda torpe que Obrigada por terem escolhido meu corpo e tenham todos uma ótima viagem. dentro de instantes, stela olha relógio que você deu a ela, stela só pensa no relógio que você deu a ela de presente de um ano, pousaremos no aeroporto isabel das coroas divinas, em longe dos confins do sul. mantenham o encosto os bonecos de vudu as encruzilhadas os problemas acabaram de suas poltronas na posição vertical, sua mesaantes posta com o banquete padrão das datas comemorativas: peru, gravy, chutney de maçã, vagens levemente apimentadas fechada e travada. mantenham os cintos de segurança afivelados. informamos que durante o pouso, reduziremos as luzes da cabine e você se lembrará docemente da meia luz do dia em que você chorou pela primeira vez até dormir e no outro dia acordou sem saber quando teria caído a última gota de lágrima. meu nome é aurora, chefe de cabine dessa aeronave chamada céu e em nome da equipe do comandante espírito santo desejo a você a eternidade - e pronto.
NOTICIÁRIO DAS SETE
paciente uma mulher loura sem filhos que caiu de um despenhadeiro na estrada que contorna a chapada mais bonita do estado, onde você passou frio em julho e pensou onde estou e como no sertão a noite é estrelada em estado grave necessita de sangue vivo vermelho em derramamento pela paz mundial, porque você mora com um mártir um herói do povo e advogado dos pobres e oprimidos de qualquer tipo. ligue do seu telefone até hoje vazio de sentido 32454040 e diga SANGUE para se cadastrar. o banco público depositário reservatório dos pedaços alheios de plaquetas - alguém grita da sacada de onde se vê o vale: todos os dias no cariri é possível enxergar essa constelação em forma de trapézio que abraça as três marias, diz o astrofísico perto de você, profundo conhecedor de fins de mundo, meteoritos, espelhos celestes cadentes milagres prestes a casar com quem por um acidente não nasceu sua irmã - agradece esse ato de amor e fé cristã.
CASA
lavar separadamente. foco naquela calça preta. coloque a mão no bolso e você achará um tesouro. dez reais, dinheiro achado, coisa que não acontece todo dia. coloque a mão no bolso daquela outra blusa preta, pense no amor, pense naquele bilhete amarelo carregado de lembranças ruins, memória que não cessa, aquele dia de novembro dentro do carro como se o mundo parecesse ao redor se acabar. tome com cuidado aquele roupão preto, lembre-se do último banho demorado que tomou, porque já não se pode mais, já não se pode mais tomar sol sem filtro, fumar sossegado sem que estampem uma suástica do lado esquerdo do seu rosto e arranquem seus sapatos de couro para um museu do novo holocausto. retire, separe com cuidado, livre, guarde, aquela blusa em azul claro que você ganhou quando ainda era bem menina e já quase não lhe cabe mais na altura das ancas. retire aquela blusa azul que você usava quando num dia que começou às quatro horas da manhã, você tomou o primeiro ônibus da luz na rodoviária do interior e voltou para aquele lugar de onde você nunca deveria ter saído. ache aquele vestido, aquele novo, aquele com tule na barra e um bordado fino que chegou da hungria em 2004, quando o primeiro membro da sua família pousou num escritório além-mar. cheire o vestido. dance. procure no tule um brilho que largou no último dia do ano, você de preto, as pessoas em redor celebrando a chegada de um dia ordinário travestido de fogos de artifício e um som fraco de uma banda de brasília. crisadálias, astromélias, fluido fortificante e água, muita água. segure o amaciante pela alça, repare novamente se não esqueceu nada que fosse mais claro que sua memória. cores escuras podem sangrar.
CONDOMÍNIO
ao se aproximar do condomínio, pense que esta é sua casa. este muro amarelo que valia um milhão de dólares na década passada, estampado na revista da casa de leilões, agora não se pode vender por vinte mil, dezoito, não se sabe. esta é sua casa. este pingo de ouro esta espada de são jorge que brota da janela da vizinha e você sempre teve inveja, acenda as luzes internas para conseguir saber que você é a doença de si e que pode ao mesmo tempo achar a cura em gás, álcool, carvão, óleo, a cosmética, um patrocínio, uma peça de roupa um colar, alguma purpurina que se solta involuntariamente de uma bolsa que você trouxe do centro da cidade, de seu problema automotor, de seus castelos de baralho, de seu veículo. desligue o farol para que a partir de agora todo mundo se perca dentro de sua própria órbita e se crie um ciclo de navegação que torne alerta a praticagem da cidade no prédio mais alto da orla a serviço do luxo. o prático sairá de sua casa, deixará seu travesseiro de penas de ganso para ancorar um navio perdido, e você ficará só, ninguém virá plantar suas próprias espadas seus pingos de ouro seus crisântemos. abaixe o vidro para identificação, você terá um dia de descanso, um dia de trabalho pesado, um dia de trabalho pesado de novo, um dia de muita alegria, um otimismo bobo que lhe empresta uma imagem eterna de criança desamparada e triste, mesmo chovendo. |