ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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MARÍLIA KUBOTA


 

O LEÃO DO EGITO

Para Cida Magalhães

nunca diga
que você diz besteira
se a palavra machuca
o gesto cura
nunca peça desculpa
o coração é mudo

diga como você diz
por não saber calar
o que é preciso dizer
e se entregar
ao sol que não te esconde

 


OS FRUTOS DA TERRA

                                            Não tenha grandes medos da Terra:
                                            Só os medos extremos serão destruídos
                                            - Laura Riding

 

nacos e não
nucas e nin
cacos de mosaico
outra língua lixa
a minha.

mas além,
extrema e não-dominada
a matéria flui,
inevitável.
ao represado fluxo desde a raiz
a seiva abre-se à Terra.

do subterrâneo
a palavra transfigura
o desejo
e supera o interdito.


CUL-DE-SAC

todos os mortos que estão olhando
bem fundo de seus esquifes
nenhum deles amou a vida
todos cortejaram a morte
acovardados ante o sol
todos desejaram amar
e sepultaram o coração
dormindo em mortalhas
fingem ainda viver
mas estão mortos como os que consultam horóscopos
morto como quem abomina dentes-de-leões
morto como quem discute jornais
e nunca vê aguadas e aquarelas
só o pensamento embaçado
por palavras mortas.

 

LABIRINTO

ruas que não sejam abaladas pelo vento.
desconfiai de ruas não abaladas pelo vento!
são ruas mornas, sem asas, hipócritas,
sem o viço das avenidas
em que correm pernas velozes
felizes por evitar ruas sem saída!
jamais permita que os astros conduzam
a becos imóveis
siga as folhas viradas no vento
e jamais arrisque
ficar perdido
no labirinto
jamais arrisque
ficar cativo
no beco
imóvel.

 

CANAÃ

murmúrios em conchas quebradas
a babel borbulha entre panelas
a vida em queda
refletida no espelho
vem no corredor estreito
reclamar aflições da eternidade
- somos intrínsecos !
mas só o azul permanece
imperturbável
enquanto vozes cruzam
o luto no deserto

 


UBERABA, CURITIBA


faltou o rapaz do meio
por que ele não veio?
porque foi cobrir alguém.
alguém que faltou?
cobrir um corpo já frio
com o cobertor do silêncio.

alguém que já foi
e não volta
não é matéria de poesia.

poesia é ler poesia
poesia é beleza fria
não este dia quente
hoje estampado em notícia
da qual o coração desvia.

eu me calo
que me ensinaram a perder
a voz cada vez mais fraca
eu grito mas tão escuro
que o silêncio me enterra
e o grito no terror dos gritos
ensurdece -
porque é preciso silêncio
mais que um minuto de nadas
pra lembrar a morte
que vive todos os dias

please go home
brother is just a friend

mas você não entende
acha que preciso
da forja do fogo amigo
de ter medo do imprevisto
de um amor clandestino

não preciso de armas
enquanto tiver palavras
nem da proteção do fogo
que cuspe o logro do fogo,

quero o pequeno mundo
quero paz na aldeia
quero voltar pra tribo

não o mundo perfeito
fio frio abandonado
pelo sangue quente

les enfants de ma patrie
são os primeiros a cair
mas não em vão:
sobre um pedaço de papel
no peito do morto à toa
flutua a palavra Não


* * *


   se a lua não fosse lodo
se eu não fosse
um pouco tudo
se dissolvesse
o mundo plástico
se soubesse a palavra
que interfere
no sono do lago

 

*

Marília Kubota é escritora e free-lancer de sites e jornais da comunidade nipo-brasileira e outros. Mora em Curitiba há mais de 20 anos. Publicou ficção na antologia Pindorama da revista Tsé-Tsé (Argentina), nas revistas Medusa, Babel e Inimigo Rumor, nos suplementos Nicolau e Suplemento Literário de Minas Gerais, nos sites Zunái, Germina e Escritoras Suicidas. Tem, inéditos, os livros de poesia Selva de Sentidos e A Dança do Desequilíbrio e o de contos A Pequena Leitora do Reader's. E-mail: markubota@uol.com.br.

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