ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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MICHELINY VERUNSCHK

 

 

 

 

Uivo

uma dor perdida

e latejo

num vasto espaço

que a cartografia da noite

diz ser a região dos silêncios.

 

Uivo.

 

Neblina.

 

* * *

RUBENS

 

O morto está preso

dentro de um dia

como as palavras

dentro de uma carta.

 

O morto está preso

qual caixa vazia

que se guardaria

dentro de outra caixa.

 

E ainda em outra

[carta, caixa ou casa]

se deposita o morto

guardado e resguardado

 

como uma casa

dentro de um dia

como um dia

dentro de uma noite

como uma noite

dentro de uma carta.

 

O morto

é

presa.


 

Amor é morte

carta violada

que sangra aberta

todos os degredos

túmulo rasgado

entre véu e selos

leitura suicida

e assassinada.

 

Amor é morte

carta extraviada.

 

* * *

ABISMO 801

 

Ela sentada na cadeira de balanço

 

O pai, fumando na sala

(a fumaça se entretendo no pai)

o pai dentro da caixa

a caixa dentro do pai.

 

A mãe cega

tateando pela casa

com as cinco chagas de Cristo

e uma tesoura

a lhe fazer companhia

 

Do lado de fora somente

                                       ela

Ela e o mundo entre

                          as

                                suas

                      pernas

 

Ela, a dança das leoas.

 

Só muito tarde

o irmão pôde compreender

e viu os dedos

brilhantes borboletas

úmidas de casulo

e viu

asas

e viu

a manhã em rajadas

 

e viu

 

e nessa hora

 

caiu

 

* * *

ROTA

 

É concha a tua boca

que me promete

continentes submersos.

 

E é o óbulo dos infernos

a prata do teu riso.

 

Inventas paisagens

o ritmo das noites

a marca da morte

sobre o meu corpo

mas não me tocas.

 

Inventas latitudes

paralelos

me dividindo em Evas

hemisférios.

Sou o teu mapa e pergaminho.

 

Girassol ou leão

teu sexo aguça

as estrelas-do-mar

e não te posso tocar.

 

 

UM SUICÍDIO

 

A aranha

delicada

lambe-me

entre os dedos

e uma luva

de veludo negro

se espalha por todo o braço.

 

Do outro lado,

a outra mão,

pálida como a neve

sangra maçãs

sobre um bilhete

inacabado.

 

Não há espelho

ou beijo

que as despertem.

 

Paralisia.

 

* * *

 

O sol

devolve

cada coisa

que a noite

furtou

com sua língua de gata.

E tudo retorna

ao seu lugar usual.

 

No entanto,

nem tudo se recupera:

o jardim de feras em chamas que há nos sonhos,

e entre o Abismo e o Unicórnio,

Eurídice,

o meu olho cego.

 

 

NAUFRÁGIO

 

Silêncio,

agora me destroço,

mastro retorcido,

casco arrebentado.

 

Meu nome encontra

o rosto da sereia cega

e decepada.

 

Meu nome encontra o nome

desse país provisório

entre a vida e a água.

 

Vértebras.

 

Pele furada.

 

Olho de baleia.

 

Agora é a minha deixa.

 

Coluna dolorida

tocando o abismo

desse céu inverso.

 

Incisão de agulhas de tricô.

 

Silêncio.

Agora me atravessam

pregos,

travessões.

 

Silêncio,

agora começou.

 

ENFEITE

 

Enquanto não vinhas

eu pastorava as brisas

e à noite juntava todas

nas cercas do meu sono.

Depois construía praças e jardins

com as palavras empilhadas sobre as cartas

com as cartas empilhadas sobre os dias

com os dias empilhados sobre o nunca.

Arquitetava outra engenharia do tempo

enquanto não vinhas

e nada, nada, era belo assim.

Enquanto não vinhas

fiz para mim esta urna funerária

com que enfeitas hoje

inadvertidamente

a tua sala.

 

 

 

*

Micheliny Verunschk, poeta e historiadora, nasceu em Recife (PE), em 1971. Publicou os livros de poesia Geografia Íntima do Deserto e O Observador e o Nada, ambos de 2003. Tem inédito A cartografia da noite, que será publicado na coleção Caixa Preta, da Lumme Editor.

Leia outros poemas (I e II) da autora.

*

 

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