ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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MILTON CÉSAR PONTES

 

 

 

SABRA

 

é para você que escrevi este livro / eu assumo os poemas / e assino minha condição de poeta / derramado / a puro sangue as minhas palavras / orvalho nascido dos poros / sereno colhido dos cabelos / que importa se ousados e ridículos / os versos na aurora dos lábios / nunca mais as mesmas sementes / as mesmas palavras / a mesma fala nunca mais as mesmas lavras / as mesmas searas nunca mais / a mesma escrita que habita a boca de papel deste livro / especial é você / nenhum aroma como seu perfume / como sua pele nenhuma droga aromática / e seu corpo de ouvidos / um corpo virgem de floresta / ao êxtase as águas   

 

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me tornei a foz de algum rio distante / aos pedaços me liquefiz / líquido como um aquário horizontal / onde mil peixes se encontram sob as vitórias régias / faz noite e um calor de mil graus / nas águas o fogo é meu ar / e minha terra é mais que meus pés pelas ruas / passeios onde abri intimamente minha absurda quietude / cometi um incêndio a plenos pulmões / e as águas lavaram minhas margens / esse poema diz por mim / o que nenhuma palavra / mesmo ferida e apaixonada / jamais diria na ausência de meus verbos perdidos / nas solas de minhas trilhas de andarilho / um deus sem pecado entre as carnes que me colorem a superfície / mais que esfinge / as planícies de minha superfície sutil / minha clarividência e minhas sombras

 

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e o rumo mais certo fosse o paraíso / e o desconhecido viesse acompanhado de manual / e a flor de si mesma / tivesse uma nova órbita / porque a si mesma se bastou / e dissesse vem / meu caule é seu cais / meu inesperado é um tipo de densidade / que se dilui no ar / ao etéreo nesse chão / passa por dentro / por fora / entre e pernoite para sempre / volteia e flui / nela mora o aroma / oram os arcanos / de um roseiral em flor / um néctar a infinitos desvarios / faz maravilhas / orna gestos / volteia e vai / inebriada ao êxtase / uma pele de lontra / para tatear seu interior / e mais que um cio de estação / uma afrodisia de inventar estações / e castelos

 

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a um pequeno arco de pedras preciosas / quem explica uma íris infinita / sua pele é feita / de células da minha alma / sua epiderme / boca fértil de beijos / molhados no crepúsculo / tátil ao infinito  / céus a  boca que sorri afetos / não promete amores /suas  costas / para minhas mãos / e ser brisa / percorrer  / campos  montes  campinas / seus seios / um incêndio nos dedos / meus olhos um fascínio sem destino / pólen nossos corpos abertos em árvores / enigmas sem pretensão de serem decifrados / me abstenho e me lanço / perfume ao banquete / você / se ruínas me afligem / flor carnívora você / minha flora me aflora / fluxo me afluxo  

 

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meu primeiro verso / como um jardim invisível onde nascem romãs / e as cores do sol / é sempre sem retorno / mas também é a paisagem de dentro / além das cascas / uma galáxia de cores as sementes / lótus como a lua / vermelha que habita os trajes / meus ultrajes que escolhe em seu guarda-roupas / guarda uma parte do mundo que conhece / brilha na sua face / as nossas faces no espelho / entre olhos no vapor das águas sobre resistências / me escapa como me escapam os lírios na chuva / e quanto mais me desnudo / mais me desconhece / e quando me descortina me encontra / se me lhama eu te lhamo / quando me perco / aos pedaços sou inteiro / partido / retido mas sempre rútilo / esse mundo ao nada / nossa catedral natural

 

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meu continente aos pés de sua cordilheira / o cheiro de ervas longilíneo / um giz no espaço que me trespassa / mistério / no côncavo das mãos / e nem sempre um espelho tão grande / para refletir seu corpo / que se espraia na penumbra / se praia sereia / se raia serpente / é no azul infinito  que me olha / e a contemplo também / escura e luminosa / além dos reflexos / um templo para inaugurar você  a cada olhar / um abrir e fechar a tempo / e espaço as pálpebras onde imagino meus olhos / se espargem / e espalham na noite além das paredes / uma aurora / arco-íris / na barra das pálpebras / um abismo as retinas    sempre alguma aura eu sei / alva a tingir o duplo em seu espelho / e me pôs os halos em fogo / meu corpo de relva fez vigília de florais / ramos para seu sono de ninfa / e o plúmeo de sua pele / se fez ninho de sonhos as andorinhas como riscos na memória das orelhas / madurados à lua / na sede da rua / estudei química entre línguas / entre lábios um cão de estrelas / asas aos céus / as bocas / voltas ao paraíso / os círculos na pele / pelos os pólos sem palavras / a palavra saudade / como se jamais sentida / escrita / falada / inexistente como um ente bárbaro / um duende raro / um aro ao fundo do mundo  

 

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surge em lençóis manchados de rubis /  ressurge você na brisa imaginária e invisível / úmida feito húmus / pulsando um fogo /  balsamo / para meu peito líquido / insurge latejando seu silêncio / na síntese de projetos / na imensa superfície de seu horizonte / sabor e delícia /  cores que vai vestir / arcos que vai pintar / nas íris de meu hálito / as plumas de uma veste que veste e reveste / uma noite que jamais vai acabar / e se acabar a próxima noite como a mesma noite / e a próxima cama como os pés da mesma cama / onde plantamos um mundo fora do mundo / e nascemos em nós como nós / o nosso sol / o nosso solar / os nossos corpos / a nossa casa / um lençol de prata / as frutas em nossas bocas / um naufrágio / esse dilúvio de amor

 

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vem porque tinha que vir / de dentro / ao vento / do interior / um cata-vento / se caça eu caçador / pelas extremidades / pelas linhas e teias / nós e novelos / carretéis em minhas manhãs / o colorir de suas tintas / suas canelas minhas mentas / estrela / plana em meu altiplano / se abre seu vértice / noturna e atômica / pinta em mim / a consciência de seus detalhes / e sai como entalhe cadente / a entalhar a ciência vertical de meus horizontes / se aves gorjeiam você gorjeia / se nascentes chovem / você me oceana / ave de sol / alada como vertigem / fantasia de meus dias / pomar de minha fome / minha sede / todos os copos / cópula de meu amor / as cores do verde / você a natureza das cores / meu lápis / e meu papel 

 

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que planície essa / vertida de argila e papiros / lã em névoa / refletida em seu olhar / que escorre / e corre / voa / se desenha na quietude oculta / sua morada em meu enxame de letras / lá o sol / e sua teia / estendeu ramos como se camas suspensas / encheu todo seu céu / de uma luz particular / se mosaicos meus fractais / se me atiro contracorrentes / me firo em você / se sabra / eu sabre e saibros / uma avalanche de ouro sua língua em minha língua / seu púbis em meu púbis / caibro e cãibra / que planície essa / que planalto esse / perto ao alto / que pastos essa pastagem / verde / verdejante / um azul a dança aquática no ar

 

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é só luz / seu sorriso em faíscas / aura / equilíbrio sutil / ouro / em barras / em pó / e mesmo líquido / um átimo que seja / nácar invisível / aura / fascínio / universo que se abriu de repente e evadiu / dízimos diziam sobre nós / galáxia sem fronteiras dizem agora / apenas em silêncio / eu e você / um infinito paraíso onde pássaros abrem caminhos / e flores nascem nas pedras / se pedras nossas camas / cantaria nossas vidas como cantam meu nome o seu nome / e seu nome o meu nome / como vivem os girassóis ao sol / vivemos nós / que viemos pelas trilhas / a colher um perfume de tão forte / inodoro como a água / transparente como o ar / onde caminhamos em sua superfície 

 

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sempre a mesma vertigem / exato que nos envolve é quase nada / quase palavra nosso íntimo / ronda escava represa / ao  lado esquerdo do terreno / as latitudes laterais /laivos os lados e todos os quadros / e quadrantes / quadrados e  retângulos / losangos / morangos / qualquer geometria asfixia / geologia fixa/ geografia ágrafa / usinas que me usem / olarias me abusem / ruas me rodam / alamedas me medram / colinas me colhem / continentes me contam / onde você estiver / eu também estarei / orquídea na forquilha / um trevo de árvores / um bosque / sua península / meu mar de maresias / um mar sensível / marcescíveis eu e você / eternos como o tempo / fugazes como um beijar a flor 

 

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sossega e desassossega / construo você sem disfarce / cuidadosamente / é frágil o metal como fortes as minhas mãos / meus dedos de ourives / as unhas em aço / torrente de lavas / esmalte de magma / antes arredia agora lavradia / fui eu quem a inventou / moldou seus detalhes / dentes seus dardos como pentes ao dorso / mistério que gravei / no cerne mineral dos desejos / nas serras de minhas hidrovias / a ferro e bruto a matéria-prima assim / obra-prima sim / e pronta / acabada / pintada e folheada a ouro / como ninguém jamais viu / eu esculpi você como me banham o rumor dos ossos / me banham os rumos de quem ensandece / em torno de si um torno para o mundo 

 

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oculto guardo um céu / o toldo de luz / e converso com as nuvens / seu mar avesso / onde estrelas me revelam / passo horas a decifrar suas imagens / vôo / aéreo ao chão / ao rés do mundo / tudo o que há em mim e a minha volta / há em você / se correntes as tempestades / e ventos os penhascos / correm os sonhos como correm os nossos pés / arredios ventam os cabelos como ventam as nossas pernas / voa quando vôo / vôo quando voa / esfumaça e enche de aromas minhas águas / se nuvens também chovem / me apaziguo quando me dissipa e diz amar os mesmos germens / amar os mesmos polens / a contemplar o mesmo azul / contemplo as portas que me levam ao sul / e abro as janelas a todos os cantos

 

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onde nos deitamos / nus em concha os corpos / a concha / antes e sempre a cama melhor é a sua / é dela onde fitamos o teto / as paredes / o chão súbito / flor devassada / flora devastada / faunos em sua ostra / a fruta o seu ventre / cálice esse pêssego virgem  em minha boca /eu me demoro / é assim que sei viajá-la /  e falo morfeu / e sente pesar as pálpebras / me calo e dorme / seu sono fosse esse poema / eu o escreveria em meu corpo / porque viemos antes da origem / juntos deciframos a noite / quando ainda não havia luminares / talvez antes ou depois do banho / quente / ao clímax / o que sinto / não se dissipa em sua virilha / diz sim / e vem / umbigo / boca / suor absinto 

 

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sabra conclui e diz / conluios em nós / dane-se / sabe querer além / que é para valer / observa o vento / se enleia na plenitude do abraço / repousa de portas e janelas abertas / sonha o mar / minha boca suas margens / vira fonte / seus lábios uma papoula / amplidão / conforto de mãos / êxtase e lucidez / o fogo que me repõe / uma alegria que não sei decifrar / mas decifrar um enigma é o mesmo que habitar um enigma / eu habito você como me habita você seu enigma / seu dogma / seu estigma / seu imã / seu hímen / você vírgula / eu ponto 

 

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sete gavetas como selos sem chaves nem código / mas uma avenca / um véu como desertos oásis / e em minhas pupilas giraram planetas / anéis de saturno em minhas rotas / perdidos no vendaval de minha cabeça / um véu de plumas / uma galáxia / as noites antes de você noites de fel/ as noites espessas de noites / e as noites depois de você as noites veludas de mel / e as noites em você / noites de luz / como lanternas me iluminam / luz além dos olhos fechados / um planeta de curvas e retas / avencas ao avesso / sou você / você sou eu

 

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e quanto mais falamos a mesma língua / mais diferentes somos / e quanto mais diferentes mais iguais somos os mesmos / pai nosso que estais / padecido / compadecido neste leito / verso e palavra / celebramos tua voz / seus ecos / palavra por palavra / nossas mãos em nossa boca / essa oração / nosso cálice / bebemos em silêncio / para sempre em silêncio / dizem nossos gritos na alvorada / para sempre / um murmúrio de amor como um mar e seus murmúrios / um mar e suas margens / mais equilíbrio sutil / impossível / além dos lábios / dois corpos como terras / animais de areia /  nossos castelos / e nossas estações

 

 

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