ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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NUNO RAU

 

 

 

 

CINCO OU SEIS MANEIRAS DE SE PERDER NA CIDADE

 

você tem cinco ou seis maneiras de se perder

na cidade Numa delas

o Livro dos Espíritos é um oráculo

tatuado em braile na pele

de meninas mestiças que dançam

nuas sobre lençóis grená

um cântico sufi enquanto

o sentido arde em suas vísceras e seus pés

escrevem um livro chamado

motel nosso lar Em outra

o labirinto de memórias detona

a dessublimação feroz

que você rasura no Breviário

das Horas, estação

por estação, como se isso

criasse qualquer âncora

entre você e o mundo E ainda uma

que repete ao infinito a metamorfose

em que diante do abismo você

é um poema escrito numa língua

estranha cujo último verso

esconde uma

chave As outras não

interessam

 

 

WIRELESS

 

o medo de se perder, mundo

punk, desenhando à faca na água suas dúvidas, você

conversa consigo pelo espelho oxidado em terceira

pessoa, rasurando à unha o nitrato, comendo grama

por grama o retrato que lhe vem na prata

quando rói os dedos entre os campos

minados, o medo

de se perder, converse comigo, nada

mais pode ser dito depois

que o chão desaparece, mundo

junkie, jungle, os hipopótamos são os únicos

que atravessam a rua sem esmagar

as flores no asfalto, linces e gazelas

não, você está

solto no espaço, nenhum céu

desaba, permanece

imóvel na aparência do instante

em que você escorre a esmo pelas trilhas

e deleta arquivos antigos, converse

comigo, menos laços, odiar

as lembranças, o medo

de se perder, mas é justo

pra onde você

vai.

 

 

TUTORIAL

 

não é um espelho o mundo, nem

moído, serol

colado na meada

dos dias que se desenrolam com a goma

do espanto, isso

que arranha sua pele, arranca a pátina

dos gestos, fatia

o real em lâminas, películas

projetadas sobre um fundo áspero, árido,

turvo, e você

descreve lentamente ao longo de uma órbita

marginal palavras que não limpam

a barra do mundo, ele não é

um espelho, nem

moído, sua farofa

seca servida na ração

diária, não é mesmo qualquer coisa em que você

se reconheça, meu chapa, por isso

escreva num livro

o inventário de técnicas

para quebrar os espelhos, agredir

os espelhos violentamente, mesmo cortando

os punhos, os pulsos, erradicar

os artefatos

da ilusão.

 

 

CONCERTO

 

ela me sorri  como se nada, longos

cabelos, crina onde se encrespa

o meu desejo no delírio de morfina

das imagens da natureza, ela parece

não sentir a vertigem de tudo,

ao fundo a gravura de um adolescente

com asas, partem de seu sexo raios

em todas as direções, não dos olhos

ou do peito, e ainda espreito, mudo,

alguém  que tenha a alma sutil

no cubículo do mundo, na volúpia

dos ardis ela desabilita o sentido

que, desfeito, espera no meio do salto

mortal ser salvo no último segundo

enquanto ela me sorri como se nada

 

* * *

(em itálico, samplers do poema Pierrete, de Manuel Bandeira)

retorno ao inferno interminável

 

você desce ao inferno

de escada rolante e ele está cheio

de meninas louras falando línguas

estranhas, elas

têm bocas que você gostaria

de desejar com qualquer tipo

de sinceridade,

com a pureza que o desejo

esqueceu ao lado do cinzeiro

no motel de quinta da rodovia

quando saiu batido, você erra

pelos corredores do inferno e descobre

mais escadas, mais corredores e não sabe

se são vitrines ou quartos escuros

estas cavernas em que as meninas

exibem sua penugem de água

oxigenada e seus sorrisos

de propaganda enquanto você

se sente a sombra deambulando

na galeria de luzes

feéricas, artificiais e o real segue cifrado

em bits no sistema servidor

central, ligado

por cabos ao caixa, você

não tem nenhum trabalho pra descer

ao inferno, ele se abriu

como um útero quente, como um buraco

molhado e pulsando por onde

seu corpo escorrega, você

está fodido, e ela não tinha

um girassol nas mãos, o girassol

estava escrito no ventre com pétalas

excessivamente amarelas enquanto no ombro

uma petúnia ameaçava

com um perfume doentio o resto

da sua vida e o mundo

girava perdido como um grafitti no meio

daquelas omoplatas.

 

daqui

 

a âncora é o corpo, o fundo

não se sabe Morto pela água

das décadas o Homem

-Aranha considera riscar

na areia fina com a ponta

em riste da última fratura

exposta o seu poema

mais abissal: vês? Ninguém

 

* * *

rede

siga pelas galerias, boca

que lhe devora, sede

contínua da esfinge

cocaicômana suportando o peso

da pureza

em suas narinas brancas enquanto

você olha de frente a crise

das metáforas, o rol

dos vilipêndios, a carne

do ato e a carne do sentido, os lugares

que agora são

restos da sua melhor

parte, enquanto você

está prestes

a se perder

de vez seguindo aquelas galerias

de fibras subterrâneas, não

sob a pele, “se você quer

enlouquecer vou

lhe contar toda a verdade que está por baixo

da verdade que está por baixo

da verdade”, ela disse

sem saber que sua cabeça já estava

a prêmio, rolando como um dado

sobre os lençóis, se contorcendo

em espasmos e murmurando

eu já sei,

eu já sei,

eu já sei

 

* * *

touch pad

a dor, dispersa como a luz,

o amarelo secreto

por baixo da evidência

do amarelo (a variedade

interminável de formas

com que destroçamos

a nós mesmos), você se olha

no espelho quando tira a máscara

e vê o rosto igual

àquilo que o escondia

sem saber quem

deformou quem, dois

lados da moeda cunhados

na mesma forma banal, neste jogo

de azar você é o dado

viciado.

 

* * *

domingo, mesmo

ela anda assistindo o programa de domingo

que se repete há vinte e tantos anos:

tomei uma coristina, mas não consegui sintetizar aquilo

que o tempo tem de ácido, nem descobrir

com o que sonham as meninas que só são inocentes

quando sonham, seria melhor

ser um bárbaro de botequim, um rebelde

no restaurante mijando na frente

de senhoras escandalizadas (oh, que coisa

antiga esse escândalo

de butique), seria

bem mais confortável acreditar que a margem

é mais confortável , e cuspir

na platéia o ácido que o sangue arranca

do tempo, seria melhor

acreditar na falta de fé,

nos desertos pós-estruralistas

que a menina da academia tentou

me descrever numa carta antiga, a menina

da academia está ao mesmo tempo conformada           

e desesperada e pagaria

seis das suas sete vidas por onze

minutos de sentido, esta menina

dormiria com Godzilla, venderia

o que lhe sobrou da alma depois

que se rendeu ao método e desaprendeu

a escrita com o corpo, depois que perdeu

o último bonde para o campo

minado dos sentidos e bate palmas

frenéticas para as acrobacias de quem ainda acredita

nas palavras, ela mente

pra mim e é por isso que somos

iguais, ela pagaria qualquer coisa, faria em público

aquilo que lhe incendeia o centro

sem centro do seu corpo, mas o mundo

não vai se abrir de novo:

não mais.

 

 

jogos de armar - + 1 lance

descendo mais um lance em espiral da escada, traço rápido um grafite com o sorriso do gato de Alice, enigmático e superficial, simulando um motivo metafísico no que risquei, afastado da arte, pelas paredes. Não, é só da carne que falo, mesmo escondido num mínimo enigma e agarrado ao corrimão no mergulho áspero rumo ao centro inatingível, sem provar qualquer profundidade, luminosa ou não, nas coisas – e a escada vai descendo abrupta e sem volta como viver.

 

* * *

jogos de armar - mandala

como um cachorro amarrado a um poste por seu dono, como um cachorro preso à trilha circular onde há um mesmo rolar das horas até que o estoque do tempo esgote, no fim, pulando casas como um dado fadado a uma roleta já viciada, assim como a cabeça na vertigem de orbitar desusadas trilhas, pela emoção mortal do salto no abismo, e como se ainda voltando a de novo saltar e ali querer, nos círculos infinitos (quando calmo), apagar o sentido dispersando quintessências no quinto dos infernos.

 

 

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Nuno Rau é poeta, carioca e leitor. Email: nuno.rau@gmail.com.

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