CINCO OU SEIS MANEIRAS DE SE PERDER NA CIDADE
você tem cinco ou seis maneiras de se perder
na cidade Numa delas
o Livro dos Espíritos é um oráculo
tatuado em braile na pele
de meninas mestiças que dançam
nuas sobre lençóis grená
um cântico sufi enquanto
o sentido arde em suas vísceras e seus pés
escrevem um livro chamado
motel nosso lar Em outra
o labirinto de memórias detona
a dessublimação feroz
que você rasura no Breviário
das Horas, estação
por estação, como se isso
criasse qualquer âncora
entre você e o mundo E ainda uma
que repete ao infinito a metamorfose
em que diante do abismo você
é um poema escrito numa língua
estranha cujo último verso
esconde uma
chave As outras não
interessam
WIRELESS
o medo de se perder, mundo
punk, desenhando à faca na água suas dúvidas, você
conversa consigo pelo espelho oxidado em terceira
pessoa, rasurando à unha o nitrato, comendo grama
por grama o retrato que lhe vem na prata
quando rói os dedos entre os campos
minados, o medo
de se perder, converse comigo, nada
mais pode ser dito depois
que o chão desaparece, mundo
junkie, jungle, os hipopótamos são os únicos
que atravessam a rua sem esmagar
as flores no asfalto, linces e gazelas
não, você está
solto no espaço, nenhum céu
desaba, permanece
imóvel na aparência do instante
em que você escorre a esmo pelas trilhas
e deleta arquivos antigos, converse
comigo, menos laços, odiar
as lembranças, o medo
de se perder, mas é justo
pra onde você
vai.
TUTORIAL
não é um espelho o mundo, nem
moído, serol
colado na meada
dos dias que se desenrolam com a goma
do espanto, isso
que arranha sua pele, arranca a pátina
dos gestos, fatia
o real em lâminas, películas
projetadas sobre um fundo áspero, árido,
turvo, e você
descreve lentamente ao longo de uma órbita
marginal palavras que não limpam
a barra do mundo, ele não é
um espelho, nem
moído, sua farofa
seca servida na ração
diária, não é mesmo qualquer coisa em que você
se reconheça, meu chapa, por isso
escreva num livro
o inventário de técnicas
para quebrar os espelhos, agredir
os espelhos violentamente, mesmo cortando
os punhos, os pulsos, erradicar
os artefatos
da ilusão.
CONCERTO
ela me sorri como se nada, longos
cabelos, crina onde se encrespa
o meu desejo no delírio de morfina
das imagens da natureza, ela parece
não sentir a vertigem de tudo,
ao fundo a gravura de um adolescente
com asas, partem de seu sexo raios
em todas as direções, não dos olhos
ou do peito, e ainda espreito, mudo,
alguém que tenha a alma sutil
no cubículo do mundo, na volúpia
dos ardis ela desabilita o sentido
que, desfeito, espera no meio do salto
mortal ser salvo no último segundo
enquanto ela me sorri como se nada
* * *
(em itálico, samplers do poema Pierrete, de Manuel Bandeira)
retorno ao inferno interminável
você desce ao inferno
de escada rolante e ele está cheio
de meninas louras falando línguas
estranhas, elas
têm bocas que você gostaria
de desejar com qualquer tipo
de sinceridade,
com a pureza que o desejo
esqueceu ao lado do cinzeiro
no motel de quinta da rodovia
quando saiu batido, você erra
pelos corredores do inferno e descobre
mais escadas, mais corredores e não sabe
se são vitrines ou quartos escuros
estas cavernas em que as meninas
exibem sua penugem de água
oxigenada e seus sorrisos
de propaganda enquanto você
se sente a sombra deambulando
na galeria de luzes
feéricas, artificiais e o real segue cifrado
em bits no sistema servidor
central, ligado
por cabos ao caixa, você
não tem nenhum trabalho pra descer
ao inferno, ele se abriu
como um útero quente, como um buraco
molhado e pulsando por onde
seu corpo escorrega, você
está fodido, e ela não tinha
um girassol nas mãos, o girassol
estava escrito no ventre com pétalas
excessivamente amarelas enquanto no ombro
uma petúnia ameaçava
com um perfume doentio o resto
da sua vida e o mundo
girava perdido como um grafitti no meio
daquelas omoplatas.
daqui
a âncora é o corpo, o fundo
não se sabe Morto pela água
das décadas o Homem
-Aranha considera riscar
na areia fina com a ponta
em riste da última fratura
exposta o seu poema
mais abissal: vês? Ninguém
* * *
rede
siga pelas galerias, boca
que lhe devora, sede
contínua da esfinge
cocaicômana suportando o peso
da pureza
em suas narinas brancas enquanto
você olha de frente a crise
das metáforas, o rol
dos vilipêndios, a carne
do ato e a carne do sentido, os lugares
que agora são
restos da sua melhor
parte, enquanto você
está prestes
a se perder
de vez seguindo aquelas galerias
de fibras subterrâneas, não
sob a pele, “se você quer
enlouquecer vou
lhe contar toda a verdade que está por baixo
da verdade que está por baixo
da verdade”, ela disse
sem saber que sua cabeça já estava
a prêmio, rolando como um dado
sobre os lençóis, se contorcendo
em espasmos e murmurando
“eu já sei,
eu já sei,
eu já sei”
* * *
touch pad
a dor, dispersa como a luz,
o amarelo secreto
por baixo da evidência
do amarelo (a variedade
interminável de formas
com que destroçamos
a nós mesmos), você se olha
no espelho quando tira a máscara
e vê o rosto igual
àquilo que o escondia
sem saber quem
deformou quem, dois
lados da moeda cunhados
na mesma forma banal, neste jogo
de azar você é o dado
viciado.
* * *
domingo, mesmo
ela anda assistindo o programa de domingo
que se repete há vinte e tantos anos:
tomei uma coristina, mas não consegui sintetizar aquilo
que o tempo tem de ácido, nem descobrir
com o que sonham as meninas que só são inocentes
quando sonham, seria melhor
ser um bárbaro de botequim, um rebelde
no restaurante mijando na frente
de senhoras escandalizadas (oh, que coisa
antiga esse escândalo
de butique), seria
bem mais confortável acreditar que a margem
é mais confortável , e cuspir
na platéia o ácido que o sangue arranca
do tempo, seria melhor
acreditar na falta de fé,
nos desertos pós-estruralistas
que a menina da academia tentou
me descrever numa carta antiga, a menina
da academia está ao mesmo tempo conformada
e desesperada e pagaria
seis das suas sete vidas por onze
minutos de sentido, esta menina
dormiria com Godzilla, venderia
o que lhe sobrou da alma depois
que se rendeu ao método e desaprendeu
a escrita com o corpo, depois que perdeu
o último bonde para o campo
minado dos sentidos e bate palmas
frenéticas para as acrobacias de quem ainda acredita
nas palavras, ela mente
pra mim e é por isso que somos
iguais, ela pagaria qualquer coisa, faria em público
aquilo que lhe incendeia o centro
sem centro do seu corpo, mas o mundo
não vai se abrir de novo:
não mais.
jogos de armar - + 1 lance
descendo mais um lance em espiral da escada, traço rápido um grafite com o sorriso do gato de Alice, enigmático e superficial, simulando um motivo metafísico no que risquei, afastado da arte, pelas paredes. Não, é só da carne que falo, mesmo escondido num mínimo enigma e agarrado ao corrimão no mergulho áspero rumo ao centro inatingível, sem provar qualquer profundidade, luminosa ou não, nas coisas – e a escada vai descendo abrupta e sem volta como viver.
* * *
jogos de armar - mandala
como um cachorro amarrado a um poste por seu dono, como um cachorro preso à trilha circular onde há um mesmo rolar das horas até que o estoque do tempo esgote, no fim, pulando casas como um dado fadado a uma roleta já viciada, assim como a cabeça na vertigem de orbitar desusadas trilhas, pela emoção mortal do salto no abismo, e como se ainda voltando a de novo saltar e ali querer, nos círculos infinitos (quando calmo), apagar o sentido dispersando quintessências no quinto dos infernos. |