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 OLGA VALESKA 

 
 

NOITE ADENTRO

Houve um poeta
que jamais traçou
qualquer palavra.

Mas compreendeu
o movimento adormecido
de um mangue,
noite adentro...

Ele desvendou
(noite infinita)
o gosto adocicado
da vida e da morte.
Mas nada reteve
no papel.

E eu soube esse poeta
que amou demasiado
as palavras,
destruiu a violência de seus corpos
e não enfileirou
sequer um verso.

Agora murmuro:
_Um dia eu vi o Poeta.
Ele dizia de um tempo sem realidade,
em uma noite sem sonhos-
com a voz suave
de quem de fato viu.
(canto desumano)

E as palavras não vieram noite adentro.
E sua voz serena se perdeu
longe do amparo dos sentidos.

 

COSMOGONIA

Veja que o mundo se rompe
(brutal)
Pleno de homens-ventres-só
Cozidos na crueza de suas próprias chamas
Peixes vivos em aquários mortais
espreitando o nada

Frágeis peixes nos limites de cristais bordados:
trincas finas de néon sob fundo cinza

...mas os peixes não constroem catedrais...
e os homens vivem sempre à distância de um grito de socorro

Veja que o mundo se rompe
(brutal)
Pleno de homens-ventres
e só

 

JEU

As cartas estão na mesa
Rei e rainha caindo no feltro escuro
perplexos
por se encontrarem juntos
Olhando-se...

Surpresos com a dança inesperada
de peões torres e hibiscos.

O sol filtrado do vidro
refrata a cor fraturada
de cristais gelados.
(Tudo pode se romper
em um instante assim...)

...e um cetro pode muito pouco
quando o corpo treme
e a voz se cala
em soluço.

Sabe-se
(o eterno louco sempre sabe)
Que as peças se movem
a despeito do pulsar das veias
de algum rei.

Que o baralho sempre cai
em castelos improváveis
dos dedos anilados
de uma dama qualquer.

Qual o domínio de uma torre
sozinha
no tabuleiro de confeitos?

Confetes ao alcance de mãos
(sempre vazias)
Uma oferenda morta.
Um olhar que vasculha
as copas violadas de medos
cobertos de pó e
escaras.

Espadas de vidro
que teimam
em ocultar a lâmina
lacerante de um lamento

E o sangue que escorre
além da vida e da morte?

Além do olhar
do rei e da rainha
que, na surpresa de serem pedras
de um jogo alheio,
morrem
e matam
e imploram
por se olharem assim.

 

*

Olga Valeska é mestre em Teoria da Literatura pela UFMG, e doutora em Literatura Comparada pela mesma universidade. Publicou na Revista ATO (Belo Horizonte) e no Jornal Dez Faces (Belo Horizonte). 

*

 

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