Cidades são ficções, como a vida (ou ficção-vida, como pensou um certo Sebastião). As fronteiras que são impostas, os trechos que escolhemos e incorporamos ao automatismo diário, as interrupções dos terrenos baldios, os canteiros, os pedaços da cidade que jamais conheceremos, mas que estão lá no mapa. Fortaleza, onde estou desde sempre, há 30 anos, tem muita claridade, muitas linhas borradas, pontos de encontro, tensão, desencontro. Fortaleza, a minha cidade inventada, invisível, incorporada à respiração, faz-se de uma geografia desmontável, de falas emprestadas de amigos, afetos e lembranças nômades, e sai pouco de casa - sendo a casa também um contorno impreciso.
Em 2006, um feliz acaso me fez topar com Gustavo López, artista argentino que passava um período por aqui, e que, entre outras coisas, é o mentor, em sua cidade natal, Bahía Blanca (ARG), de uma bonita empreitada chamada Ediciones VOX, editora militante de poesia, que publica livros, plaquetes, revistas e objetos, não raro com alguma interferência única em cada exemplar (um recorte, uma colagem, um botão), como a lembrar o orgânico daquilo que está por trás; que livro, antes de produto, é (ou deveria ser) ato, gesto. De uma conversa informal entre eu, Gustavo e o amigo em comum Júlio Lira, veio a provocação de tentar articular um apanhado de vozes que dissessem um pouco desta cidade, mesmo que fosse meio que só uma desculpa para uma outra conversa, que é brincar de ver até onde dá para esticar a própria idéia de cidade, ou mesmo de “antologia”.
Resultado deste processo foi o livro Meio-dia: alguna poesía de Fortaleza, que organizei e que, contando com o apoio de uma Bolsa do Edital das Artes de 2006 da FUNCET-CE, foi publicado em 2009, pela VOX, em edição bilíngüe (português/espanhol), trazendo o trabalho de Henrique Dídimo, Carlos Augusto Lima, Rodrigo Marques, Virna Teixeira, Eli Castro, Manoel Ricardo de Lima, Eduardo Jorge, Rodrigo Magalhães, Diana Mello, Ruy Vasconcelos, Júlio Lira e Cândido Rolim, poetas cujas trajetórias tangenciam Fortaleza, seja porque nasceram, estão ou estiveram aqui. Assim, o projeto não se pretendeu um “recorte dos melhores” ou algo da espécie; mas sim um feixe de conversas, embora, obviamente, uma seleção implique, sempre, em escolhas – neste caso, pessoas cujos trabalhos apontam caminhos de elaboração estética e questões para discutir e problematizar a cidade, mesmo quando ela não aparece especificamente como tema, mas como dado inerente, anterior. A polifonia daí resultante reflete, de certa forma, a porosidade própria deste lugar.
À época, escrevi, na apresentação do livro, que: “Meio-dia sublinha o corpo, anula a sombra. É de quase sempre um incômodo, mesmo se traduz, literal, o que se diz terra da luz. É a hora do deserto. Da vida impossível, e do que se pode duvidar disso. Sendo, pois, da tensão, é que meio-dia pode ser o nome do hiato, de um trânsito entre aqui e lá. Das contaminações recíprocas, ainda que o que une seja menos um fio que pende e muito mais a sujeira de um esbarrão, que seja, da troca de pós que sobra desta pequena violência que é um abraço. Que, por isso, não é menos sério nem menos político, como um gesto que é. E que se alonga em um amigo que mora longe, que publica livros alheios com uma serena convicção, em si mesmo seu porquê, e que sem pertencer às terras de cá, intui, como a gente, que não precisa nascer numa cidade para sabê-la; antes de se escrever sobre, a cidade já vem colada, como uma respiração. Ou cidades, plural, que seja, esta palavra, movediça que é, de até não se saber, quando se caminha robótico, na rotina, sob a sola do pé, qual é a cidade em que se pisa.”
Agora, um novo convite amigo (do poeta Claudio Daniel, também de outra cidade) me faz tentar este desdobramento do que foi o Meio-dia. Assim, os textos que compõe esta amostragem conservam, penso, a mesma leveza e contundência daquele projeto inicial. Alguns autores se repetem, outros não. Outros ainda poderiam estar aqui. Isto não é tão importante: não é uma antologia, são outras conversas, que gosto de pensar como pequenas coleções, e evocar aqui a dicção de Italo Calvino, autor de Cidades Invisíveis e de Coleção de Areia, este último seu mais recente lançado no Brasil, onde pontua que todos os cenários da vida do colecionador surgem mais vivos que numa série de slides coloridos, evocados e ao mesmo tempo cancelados pelo gesto já compulsivo de inclinar-se para recolher um pouco de areia. Poemas como dobras: outra cidade de areia, outra coleção invisível.
Fortaleza, setembro de 2010 |