ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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RAFAEL ROCHA DAUD

 

 

 

 

Os chineses perscrutam a lua

de perto. Têm um grande país,

mas querem visitá-la. No lago

Li Po mergulha bêbado e morre.

Não aceitam que o ar ou a água

se coloquem no caminho deles.

Pensam que a lua é sua casa

e que é seu direito ir até lá.

Se metem num foguete e se lançam

no espaço como os russos fizeram;

não enviam cadelas porém:

julgam tratar-se de um privilégio

aproximar-se da lua. Têm

um grande país. Maior que ele

é a noite que instiga seus desejos.

 

 

“Temer a morte fora do perigo e não no perigo”

Pascal

Possa minha certeza

            e minha confiança

dar-se em meio ao perigo,

porque o perigo exige mais

            e maior violência, maior malvadez,

 

E também porque ao seu fim

— a vitória — tornam-se a certeza

e a confiança descartáveis,

a inconstância, inocente,

a dor, uma lembrança doce,

         um aguardar possante

         e uma alegria orgulhosa.

 

Violeta e folhas secas e toalha vermelha

E pão de sal e marca de vinho

Sobre a mesa da sala

Mas estamos na cama no quarto sem luz

 

Ocupados com nossos pensamentos

Observamos um ao outro, e o apartamento

Em busca de uma idéia do que fazer

E eu só tenho a você

 

Fizemos tuas malas, é certo

Esperamos a hora de partir

E já sei aonde vamos

Não, isso era pra eu guardar pra depois

 

Alguém virá nos buscar

E carregar as coisas pra nós

E eu te direi coisas bonitas

E não vai haver despedidas

 

Você põe Milton pra tocar

No meio de uma frase minha

E eu acompanho a melodia

Eu esqueço o que vinha falando

 

Você tece comentários escandalosos

sobre o beijo que eu te dei na cozinha

Mentira, nós já havíamos ensaiado tudo

Você gosta de me ver sofrer

 

Você lembra de um poema do Drummond?

Você já sabe que eu não vivo sem você

Quando eu estive na rua Lopes Chaves

não me deu preguiça, apenas senti muito frio

E estaria mentindo si dissesse que não fiquei

comovido com aquele brasileiro:

Talvez com sorte eu ficasse um pouco igual a ele

E o Drummond tão menino, tão cumpadre

 

Você sabe que eu gosto de flores e de inverno

E o mês antes de setembro me enche de alegria e de esperança

E quando for teu aniversário não te darei nada,

porque sou pobre

Mas você escolha qualquer coisa e eu removerei as

manchas e será, de coração, todo seu

 

 

 

 

STARDUST

Embora escorra pó brilhante das galáxias

            pelos meus cabelos

Embora os bárbaros guerreiros invejem

            minha roupagem vagabunda

E ainda que a chuva alague o país

            Serei o manco, o manco

 

 

 

 

NÃO É NADA DEMAIS

 

As pessoas só estão assustadas

não houve tempo e você sabe

as cenas se desenrolam sem um ensaio

sem sequer um roteiro

as pessoas pegam o que têm à mão

se você olha de longe pode perceber o medo

e o em si mesmo curiosamente animal das pessoas

 

Dirceu Villa – As pessoas só estão assustadas

 

não é nada demais

nós só estamos assustados

hoje

se fizer frio e se chover ao mesmo tempo e por causa disso

só por causa disso não pudermos sair de casa

nós só estamos assustados

quando chegamos tarde da noite cansados e acendemos

todas as luzes da casa nós só estamos assustados

ao pedir para o garçom que nos troque de mesa ou os talheres

por algo mais confortável só estamos assustados

com os olhos pregados na embalagem de um alimento matinal

que vem pronto nós olhamos assustados para os gatos à noite

havíamos imitado os gatos à noite

à noite quando olhamos bem assustados para os olhos de alguém

e repetimos aquelas frases que escolhemos para declarar

nosso amor que pode bem ser amor verdadeiro como os tais girassóis de Van Gogh

para os quais nós também nós já olhamos assustados

 

nós só estamos assustados e falamos o tempo todo

de jogos de gato e rato e esperamos o tempo

de olharmos em volta como o gato, nós somos os ratos nós

só estamos assustados como quando começa o carnaval

e sabemos que se chove ou não

sempre nos sobra alguma coisa porque

todas as ruas são becos e

todos os becos são avenidas intermináveis

 

nós só estamos assustados mesmo quando você volta atrás e decide

que agora sim vai me seguir embora não esteja clara a diferença

entre amor e adoração para que eu te siga também

e também assustado lhe digo que procuro

a um bairro industrial antigo quando passo pela praça

em frente de onde você mora e

penso que se me visse agora

ou não me reconhecia ou ficava muito surpresa

nós só estamos assustados lado a lado pensando tratar de outro

assunto nós estamos ficando assustados porque digo a você

quero vê-la mesmo assim nós só estamos

assustados querida nós dormimos assustados nos braços

um do outro e acordamos ainda assustados

nos braços um do outro quando é tarde da noite e

passamos o dia todo em claro estamos mesmo muito assustados

assustados quando olhamos para o calendário e nos parece ver

ali outro futuro que não este a que estamos condenados

ficamos mais assustados nosso futuro ainda

não estava no calendário quer dizer que ainda

não estamos com os dias contados nós só estamos vivendo

numa época em que chamam luz à escuridão e

embora minha língua esteja morta

suas formas me enchem a cabeça nós só estamos vivendo

num período cujo nome não sabemos e

embora seja o medo o que me move meu

coração está parando nós só estamos assustados

quando vendemos nosso carro muito barato quando compramos

outro carro mais caro nós só estamos assustados

quando vendemos nosso carro por uma bicicleta porque nossos filhos terão de esperar tempos melhores para nascer

nós só estamos assustados mas não chegue não chegue perto

talvez ainda não tenha chegado o tempo de se dizer que nós só estamos assustados

 

 

*

 

Rafael Rocha Daud é poeta, além de psicanalista. Foi organizador da FLAP nas últimas três edições. Tem publicado em diversas revistas desde 1999 (entre elas a Cult, em São Paulo, DiVersos, em Lisboa, e Punto de Partida, em México D.F.), e acaba de publicar o primeiro volume de seu livro de estreia, Poemas para o Século XX.

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