ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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RAMONE ABREU AMADO

 

 

 

 

GINASTA

(EXERCÍCIOS NAS ARGOLAS)

 

Ele rebela o corpo para prever
até onde se pode aproximar dos movimentos de Deus

 

Nas argolas o ginasta apresenta a coifa das asas do anjo equívoco
e ao ser também atacado por um trecho dos tentáculos de Deus
impulsiona-se para o longe da terra
e opina no céu

 

O corpo reunido de ponta-cabeça
oferece visão do Cristo Invertido
e o ginasta — homem físico e transcendental,
singular na acuidade das asas,
flexiona-se na força que não possui
até o desistir da lágrima e da competição.

 

(De Imitação de espelho, 2001)

 

 

ANIVERSÁRIO DE MORTE

 

as palavras perdem a esfera do dia em que estamos

creio que estais sabendo de uma nova citação para comemorar

lembra-te! não escondas as fatias de luz que agregam morte ao bolo

 

fazemos anos na lúcida minoridade

de quem ainda suspeita

sol nas olheiras

papel de seda que não se dobra

borboleta esvaindo-se em pó químico

moinhos que gelam águas que os cercam

 

minha felicidade embrulhada no estômago

entrego na dedicatória

penso que o querer está mais bonito sem confeitos

garfinhos de plástico espinham meu coração

na estrutura das décadas

 

pássaros comprimários ensaiam tons patéticos

formas inarticuladas da natureza comentam minha vida

esta em que resolvi ir da fala à voz

todos nós devemos ler a história das lágrimas de Cesário

 

eu vim para cantar

em agudo “com quem será?”

não confundas isto com servilidade

para não seres tão cardíaco na posse

triste lembrar daqueles que morrem em aniversários   

 

aprendiz de jamais apagar velas longe do vento

na arribação

troquei tua vida pela metáfora

assim quebrei a abertura do silêncio

 

(Inédito)

 

 

PULMÃO DE NARCISO

 

o pão comido nos bosques

alma confeccionada em poliamida

e os olhos ainda jovens do momento fortuito

não apresentam mais resistência

à tração, à abrasão destes dias

aos quais os calendários tratores nos forçam

 

minhas reviravoltas são de nylon

e coleciono desde já as cordas para o motor de popa

que me irá arrastar enseada adentro

 

o sisal do avô nos serve

posto que não serve para as grandes quedas

(enfileirados na mucosa saudaremos nosso sangue todo misturado)

 

são estas distonias emocionais

que a gleba aguarda

– banhos e tosas –  

e que me pressinto

no meu canto esquerdo

 

os esgares

as facilidades e as neuroses dos tempos me vitimando

como alpinista em potencial

 

em paredes de papel

pêndulo risível é o trato com a era

dos parcelamentos facilitados

e açougues familiares

 

em Belém

mais comum é o enforcamento com cordas e redes

sim, jovem e as geleiras ouvem meu pulmão escalar

 

o mundo é esta loja autorizada

para a venda do meu cordame

a anatomia de um musgo que dança

numa cabeça de lama

 

(Inédito)

 

 

ODE MÍNIMA ÀS BAILARINAS DE FLAMENCO

 

Onde estão as bailarinas de flamenco no tempo exato da primavera?

 

Suas cores de negro e vermelho chamando aos homens gatunos

para perto de seus beijos de perfume e carne quente

 

Todos sabemos que as bailarinas de flamenco pertencem ao inverno

quando se pode beber vinho escuro

e sonhar os encantamentos secretos que se ocultam em seus vestidos

como que surgidos de uma fogueira levantada com milhares de desejos

colhidos de todas as partes do mundo

 

Meu irmão tinha uma dessas bailarinas de flamenco aos oito anos de idade,

bailarina de geso corrompido

prêmio de uma caixa de tequila que nosso pai havia comprado para o Natal

 

 

Essa bailarina de brinquedo era a noiva de meu irmão Pablo

em todos os lugares em que ia a levava com ele

era uma entidade com a qual sonhava casar-se em alguns anos, quando ela tomasse vida

 

Sim, uma bailarina de flamenco na mente humana provoca desvios irreversíveis

 

são suas longas pernas inusitadas feitas de vento

as castanholas que cumprem o destino da dança no momento de real execução 

o sorriso átrio, descasado de qualquer possível problema  

 

As bailarinas de flamenco não sentem fome

mas também não se deixam levar por falsos preditos

seus cabelos longos e fortes presos com uma rosa

aderem ao flanco de desejos loucos

 

É certo que fui acometida da vontade de tornar-me uma delas

vivas e de olhos secundários

mas minhas meias de seda desfiaram por completo

e assim reconheci mais rapidamente que meus versos eram coreografias equivalentes  

então apenas escrevo uma ode mínima para as bailarinas de flamenco,

em memória de meu irmão

que viveu toda uma vida acometido dessa envolvência     

(Inédito)

 

 

PLIAGE

 

tenho sobrevivido à sombra de edifícios com patamares

uso um vestido meu de cânhamo

como que para rever meu capinzal no qual dois vestígios

de campana liam Proust em alta voz antecipando os beijos

 

nossos grandes homens do clero secular guardaram

seus chapéus de soldado

tomaram anilina e cânfora

viraram abades com sonhos de Simeão

e Pacômio, que diziam dormia sobre um muro

 

a era das anistias parece ter acabado como os cavalinhos-de-pau

as réplicas dos antigos guarda-chuvas

perucas e dentes que exigiam cola

 

viemos preservando as técnicas para fazer chover

e suportamos o sol monobásico

tão forte que estoura nossos balões e sapos e copos

 

vincar o papel

– calibrar o amor para que se suporte antes da decadência

de depois que me desapropriastes a casa

no minuto em que o tempo se faz especialista

em provas de arremesso

 

(Inédito)

 

 

*

Ramone Abreu Amado nasceu em 1981 na cidade de Lages (SC). Formada em Letras pela Univille e especialização em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC-MG.  Publicou o livro Imitação de Espelho (2001) e tem no prelo o livro Origami em Eras Fágicas.

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