ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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RICARDO CORONA



 

NO LUGAR QUE NÃO SE RESPIRA

 

um livro feito de água
........é perfeito
porque não se pode
guardar

suas páginas líquidas
................
translúcidas
vêm dos anfíbios-hieróglifos que dizem não
à luz
....não hesitam ao eterno eclipse
........
de um céu aquoso

de lá vem as imagens do livro
que não é um livro de arte

um livro feito de água não se quer eterno
(sequer existe)
mas um ser vivo (um peixe é um livro)
na diversidade que adensa a unidade
no lugar que não se respira
............................ ar

 

"AS PALAVRAS SÃO PEIXES DENTRO D'ÁGUA"*

 

"As palavras são peixes dentro d'água".
(No dentro, no frio, no fundo,
nas camadas de correntezas,

na luz das couraças blindadas,

no fluxo vivo sem capítulos,
contra a métrica das ondas,
no movimento do musgo,
no dialeto rente ao chão,
na lama das carcaças,

no amor letal do esqueleto predador,
na alma-fobia do anfíbio ornamental.)
Nas páginas líquidas de Sade, os peixes são palavras.

* Yánnis Varvéris

 

FUGACE

ninfa d'água, dançarina
fugaz, ondina

de chifres de espuma
rapidamente se
dissimula ¾
menino-peixe, meio fauno
meio deus marinho

que Iemanjá devolve ao mar.

 

 

WARIS DIRIE
(canto somali)
                           

Waris, Waris
flor do deserto
nômade somali
entre os bichos

e fugiu dos homens

Waris, Waris
atrás de nuvens
atrás de chuva
a pé até Mogadíscio

e abriu alas em Londres

Waris, Waris
Deusa da África
flor de clitóris
teus lábios, Waris

estão nas meninas somali

 

CIPÓ DOS ESPÍRITOS

Livre da última idéia,
no suor dos espelhos,
ideogramas dizem adeus
ao abano das janelas.
Na retina, o susto de um deus
- nu e minúsculo -,
origami de Narayama.
Um retalho de bolsa fetal
ainda umedece o ouvido.
Visão de libélula.
Não-luz dos seres guardados
na água do solo mais fundo
— amanhecer da memória antiga.

*

Ricardo Corona nasceu em Pato Branco (PR), em 1962, mas reside em Curitiba. Publicou os livros de poesia Cinemaginário (1999), Tortografia (2003 em colaboração com a artista plástica Eliana Borges), a antologia Outras praias – 13 poetas brasileiros emergentes (1998) e o CD de poesia Ladrão de Fogo (2002), entre outros títulos. Editou a revista de literatura e arte Medusa; hoje, edita Oroboro.

*

 

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