ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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ROBERTA TOSTES DANIEL

 

 

 

 

AELO


I.

 
Voa sobre a terra firme

 para inspirar

 a imobilidade.

 

Dança a pura transgressão:

um pássaro do espanto.

 

Venera a paisagem afogada

de onde foge para a

 

liberdade.

 

Amanhã, talvez

 a sombria

 indecisão do voo

 o pouco alimento

 

- restará a fome.

 

Mas, hoje, o sol

 pesa como um corpo

 deita seu calor

 sobre o ouro.

 

II.

 

Outro, que voa: o amor,

(imaterial) peso do mundo.

 

Hoje, sobre mim, amor,

o peso da matéria

do mundo.

 

(suspensa e atônita)

 

A humanidade de um anjo

a angeologia de um homem.

 

Síntese impossível:

homemulheranjo

e o pássaro do assombro.

 

III.

 

Vigoroso pacto

de mãos que tecem

em asas

 

curvas

e fêmures da palavra.

 

O bico

do seio.

 

O osso

fratura o silêncio

com a música

 

de ave do espanto.

 

IV.

 

Canta com a rouquidão da voz

inventada nas cordas de um grito:

 

a harpia

 

leva o desejo de som

enquanto o gozo da semente

 

sobrevoa in

certezas

 

- o aelo da perplexidade

 é um desejo aéreo de brotar

 

da terra

 

Valsa sobre a esperança.

 

*


CHEGADA


Consinto tua chegada.
Contanto, amor,
Não faltes.
Descalço, vem
Derramar pegadas
Sobre o areal.
Deitar os lastros,
Transido
Pelas águas.

*


BORDÔ

Tuas mãos me alcançam,
Despejadas de flores.

E o enigma das palavras
Tatua ávidas carícias
(Cruel, delicado
Perfume que não se toca).

Ponteias o fundo falso da realidade,
Sabes que corro praias nuas
À cata de uns corações raros.

Tua efígie, um rumor de serpentes,
Brinca à borda da luz da solidão
(Desvios não mensuram
A curvatura dos desejos).

Avanças na paisagem,
Eva sobre o Mar Egeu:
Bacante és.

Debuto a vida, faminta pressa
Bem quieta, acesa nas idéias.

Mas o teu farol,
Ele envenena o meu mar
De sonhos…


*


MARÍTIMOS


I.

Porque és um corpo
E me afogas.
Todo um oceano
Arrastas:
Redes, vertigens,
Peixes, voragens.
Porque o teu anzol
Lanceia minha fome;
Tua isca,
Meu beijo rasga.


II.


Estiolam meus cabelos
Que não ventam
Nos teus olhos
Arremessam águas.
Furam meus cardumes de pedra.


III.

Teu corpo obcecado
Vence a matéria de rochedos.
Deito na pedra;
Quebras com sangue,
Por imaginá-la.
Acaso meu corpo,
Essa espécie de água
Viva em que ardes
O flagelo das algas.


*

 “eu poderia dizer pela última vez (…) que eu era um homem e não estava apaixonado (…) mas preferi me calar” (João Gilberto Noll)

Doçura tanta: morre
E oferenda o corpo.

Que ternuras hediondas
Logram o fim
Revolvendo águas da infância?

Águas passadas não movem moinho
Mas movem o morto.

Ele sorri pro tsunami
Ao reconhecê-lo.
Não delira.

Sonha um mesmo sonho:
Maremoto.
Há décadas.

Contorna tudo, como a onda.
O olhar deformado da criança
No corpo do homem:
Fértil descampado
A solidão escalavra o corpo.

Dos sóis, sabe
A luz que acendeu
Pra não dormir no escuro.

Não morreu de medo
Nem de amor.

 

*


Sempre a infância
- perdida.

Cavalos esculpidos pelo vento,
Que desatinam.

(Se todo amor soubesse
A fenda sob os dias,

Cavalgava a terra
Antes do poente)

Meninos cavando
Contra a morte

O ventre cheio de adeuses;
Abismos onde o sol adentra,

Lutando
Ardentemente

 

*

AINDA


No silêncio: compasso de solidão.

Depois que a música (me) acaba,

Fazer o sem-lugar onde desvio

Linguagem e desejo.

Fremir de ondas

Entre mim e canção,

Escrever as pausas de outra:

Mais sutil, de sombra.

O que eu não toco: pertença minha

(toda escuta, posse).

Onde não sou e não tenho;

Até que ouço, simplesmente.

Presa por vontade

De escutar o que é livre:

O inalcançável movimento

Do mar -

O chamado:

Palavras instigando ondas.

Ouvir o tempo insondável

No mesmo silêncio de corredores e sótãos.

Menina, lia. Escutava Quintana

Onde todas as canções comandam a nau

Apinhada de meninos mortos.

Terrível-suave.

E virgem. O silêncio virgem.

Ocupá-lo com desejo e memória,

Violentá-lo. Se tento calar,

Bebo o tempo: nau frágil.

Um ponto afogado e luminoso da escada,

Perto do peito: o porão do prédio.

Sou eu, um barco ainda ouvindo em segredo.

Degredada em sombra.

Um buraco de luz; deixada pela canção

E pelas brechas nos tijolos.

Abri a porta para o vazio.

Veio a rebentação. Nem perto o mar.

Os vizinhos não sabem; suas casas quando acendem;

Luzes me arrebentam faróis no peito.

As cortinas me abrem. Não saí do quarto.

Tudo veio à voz, depois da voz, minha voz sibilante.

O corredor ainda grande.

Meu sem-lugar: linha do tempo.

Tento uma ausência. Tudo lembrando.

Imagens correm, três delas, ardendo.

O novo. Arrebenta o novo. Oscilações de novo.

Até mesmo no fogo. Tudo são águas.

É um estar-se preso, realmente

(como no amor).

Quem ouve o silêncio, sem fim,

Devorando quem canta,

Move o sagrado, morre em mim.

Não só leveza. Todo instante é um corte,

Toda delicadeza funda o sal na voz

E um corte sempre fala ao dentro.

Arde o vigoroso.

A carne não é rente;

Requentada no sangue, vem antes

(na alma do que não fomos).

Nos afogamos.

A palavra, aprende:

Vai fracassar.

Como a música, seu fim.

Um tempo de mortes, no sempre.

Mas não enquanto:

O canto.

*

FERRO, BRASA E PALAVRA

Marcada a ferro, brasa e palavra
Cunhada a pecados,
Divinos torpores.

Por doutrina, naugrafada
Nada além do sal das águas.

Nua pedra riscada
Rebuliço marinho
E amor, canto de morte:
Ferro, brasa e palavra.

Liberta, cego abraço
Que não se vê, mas se toca
Com um corpo carregado
- esta terra etérea de sons.

Marcada a ferro
E a brasa e a palavra
Descalabro
– esta terrível amplitude.

Amiúde canto
O longo brado
A impossível completude.

Tudo que doma, deforma
Conforme os encontros
Longas jornadas.

Eu traio o teu nome
Atraio os chamados.

Soturna, tua chama
Me acha, tua noite
Queimando horizontes.

 

 

*

 

Roberta Tostes Daniel: carioca nascida em 1981. Também é mineira, por vocação e herança familiar. Funcionária pública, estudante de Letras tardia, quase jornalista. Seu laço mais profundo com a existência a une à palavra, aos sentidos e à memória. Escreve no blog Sede em Frente ao Mar (http://sedemfrenteaomar.wordpress.com).

*

 

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