AELO
I.
Voa sobre a terra firme
para inspirar
a imobilidade.
Dança a pura transgressão:
um pássaro do espanto.
Venera a paisagem afogada
de onde foge para a
liberdade.
Amanhã, talvez
a sombria
indecisão do voo
o pouco alimento
- restará a fome.
Mas, hoje, o sol
pesa como um corpo
deita seu calor
sobre o ouro.
II.
Outro, que voa: o amor,
(imaterial) peso do mundo.
Hoje, sobre mim, amor,
o peso da matéria
do mundo.
(suspensa e atônita)
A humanidade de um anjo
a angeologia de um homem.
Síntese impossível:
homemulheranjo
e o pássaro do assombro.
III.
Vigoroso pacto
de mãos que tecem
em asas
curvas
e fêmures da palavra.
O bico
do seio.
O osso
fratura o silêncio
com a música
de ave do espanto.
IV.
Canta com a rouquidão da voz
inventada nas cordas de um grito:
a harpia
leva o desejo de som
enquanto o gozo da semente
sobrevoa in
certezas
- o aelo da perplexidade
é um desejo aéreo de brotar
da terra
Valsa sobre a esperança.
*
CHEGADA
Consinto tua chegada.
Contanto, amor,
Não faltes.
Descalço, vem
Derramar pegadas
Sobre o areal.
Deitar os lastros,
Transido
Pelas águas.
*
BORDÔ
Tuas mãos me alcançam,
Despejadas de flores.
E o enigma das palavras
Tatua ávidas carícias
(Cruel, delicado
Perfume que não se toca).
Ponteias o fundo falso da realidade,
Sabes que corro praias nuas
À cata de uns corações raros.
Tua efígie, um rumor de serpentes,
Brinca à borda da luz da solidão
(Desvios não mensuram
A curvatura dos desejos).
Avanças na paisagem,
Eva sobre o Mar Egeu:
Bacante és.
Debuto a vida, faminta pressa
Bem quieta, acesa nas idéias.
Mas o teu farol,
Ele envenena o meu mar
De sonhos…
*
MARÍTIMOS
I.
Porque és um corpo
E me afogas.
Todo um oceano
Arrastas:
Redes, vertigens,
Peixes, voragens.
Porque o teu anzol
Lanceia minha fome;
Tua isca,
Meu beijo rasga.
II.
Estiolam meus cabelos
Que não ventam
Nos teus olhos
Arremessam águas.
Furam meus cardumes de pedra.
III.
Teu corpo obcecado
Vence a matéria de rochedos.
Deito na pedra;
Quebras com sangue,
Por imaginá-la.
Acaso meu corpo,
Essa espécie de água
Viva em que ardes
O flagelo das algas.
*
“eu poderia dizer pela última vez (…) que eu era um homem e não estava apaixonado (…) mas preferi me calar” (João Gilberto Noll)
Doçura tanta: morre
E oferenda o corpo.
Que ternuras hediondas
Logram o fim
Revolvendo águas da infância?
Águas passadas não movem moinho
Mas movem o morto.
Ele sorri pro tsunami
Ao reconhecê-lo.
Não delira.
Sonha um mesmo sonho:
Maremoto.
Há décadas.
Contorna tudo, como a onda.
O olhar deformado da criança
No corpo do homem:
Fértil descampado
A solidão escalavra o corpo.
Dos sóis, sabe
A luz que acendeu
Pra não dormir no escuro.
Não morreu de medo
Nem de amor.
*
Sempre a infância
- perdida.
Cavalos esculpidos pelo vento,
Que desatinam.
(Se todo amor soubesse
A fenda sob os dias,
Cavalgava a terra
Antes do poente)
Meninos cavando
Contra a morte
O ventre cheio de adeuses;
Abismos onde o sol adentra,
Lutando
Ardentemente
*
AINDA
No silêncio: compasso de solidão.
Depois que a música (me) acaba,
Fazer o sem-lugar onde desvio
Linguagem e desejo.
Fremir de ondas
Entre mim e canção,
Escrever as pausas de outra:
Mais sutil, de sombra.
O que eu não toco: pertença minha
(toda escuta, posse).
Onde não sou e não tenho;
Até que ouço, simplesmente.
Presa por vontade
De escutar o que é livre:
O inalcançável movimento
Do mar -
O chamado:
Palavras instigando ondas.
Ouvir o tempo insondável
No mesmo silêncio de corredores e sótãos.
Menina, lia. Escutava Quintana
Onde todas as canções comandam a nau
Apinhada de meninos mortos.
Terrível-suave.
E virgem. O silêncio virgem.
Ocupá-lo com desejo e memória,
Violentá-lo. Se tento calar,
Bebo o tempo: nau frágil.
Um ponto afogado e luminoso da escada,
Perto do peito: o porão do prédio.
Sou eu, um barco ainda ouvindo em segredo.
Degredada em sombra.
Um buraco de luz; deixada pela canção
E pelas brechas nos tijolos.
Abri a porta para o vazio.
Veio a rebentação. Nem perto o mar.
Os vizinhos não sabem; suas casas quando acendem;
Luzes me arrebentam faróis no peito.
As cortinas me abrem. Não saí do quarto.
Tudo veio à voz, depois da voz, minha voz sibilante.
O corredor ainda grande.
Meu sem-lugar: linha do tempo.
Tento uma ausência. Tudo lembrando.
Imagens correm, três delas, ardendo.
O novo. Arrebenta o novo. Oscilações de novo.
Até mesmo no fogo. Tudo são águas.
É um estar-se preso, realmente
(como no amor).
Quem ouve o silêncio, sem fim,
Devorando quem canta,
Move o sagrado, morre em mim.
Não só leveza. Todo instante é um corte,
Toda delicadeza funda o sal na voz
E um corte sempre fala ao dentro.
Arde o vigoroso.
A carne não é rente;
Requentada no sangue, vem antes
(na alma do que não fomos).
Nos afogamos.
A palavra, aprende:
Vai fracassar.
Como a música, seu fim.
Um tempo de mortes, no sempre.
Mas não enquanto:
O canto.
*
FERRO, BRASA E PALAVRA
Marcada a ferro, brasa e palavra
Cunhada a pecados,
Divinos torpores.
Por doutrina, naugrafada
Nada além do sal das águas.
Nua pedra riscada
Rebuliço marinho
E amor, canto de morte:
Ferro, brasa e palavra.
Liberta, cego abraço
Que não se vê, mas se toca
Com um corpo carregado
- esta terra etérea de sons.
Marcada a ferro
E a brasa e a palavra
Descalabro
– esta terrível amplitude.
Amiúde canto
O longo brado
A impossível completude.
Tudo que doma, deforma
Conforme os encontros
Longas jornadas.
Eu traio o teu nome
Atraio os chamados.
Soturna, tua chama
Me acha, tua noite
Queimando horizontes. |